
A Constituição Política do Império do Brasil, comumente conhecida como Constituição de 1824, foi a primeira Carta Magna do Brasil independente, outorgada por D. Pedro I em 25 de março de 1824. Sua relevância é imensa, pois ela estabeleceu as bases da organização política e administrativa do recém-nascido Império Brasileiro após a Proclamação da Independência em 7 de setembro de 1822.
Para muitos, essa Constituição é um marco do pensamento liberal e um avanço constitucional para a época. No entanto, ela também é vista como um instrumento que serviu para prolongar a escravidão por décadas e fortaleceu os laços entre o sistema escravista e o constitucionalismo brasileiro.
Um dos fatos mais notáveis sobre a Constituição de 1824 é sua longevidade: ela permaneceu em vigor por 65 anos, até ser revogada pela Constituição de 1891, após a Proclamação da República. Isso a torna a constituição com a mais longa vigência na história do Brasil.
Para entender a Constituição de 1824, é crucial conhecer o contexto de sua criação, marcado por intensas disputas políticas.
Após a Independência, o Brasil, que ainda enfrentava a luta contra tropas portuguesas em regiões como a Bahia, precisava organizar sua estrutura política e jurídica. A ideia de uma Constituição ganhava força, sendo vista como uma "arma principal a ser empenhada contra o despotismo", para evitar a acumulação de poderes nas mãos do soberano. O pacto firmado entre as províncias e D. Pedro I previa que o novo país deveria ser uma monarquia constitucional.
Para elaborar a nova Carta, foi reunida a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil em 3 de maio de 1823. Desde o início, o processo foi "desgastante, amplo e muito conturbado".
O Discurso de D. Pedro I: Na abertura, D. Pedro I deixou claro suas expectativas. Ele afirmou que a Constituição deveria ser "digna do Brasil e de mim", com os três poderes bem divididos e barreiras "inacessíveis ao despotismo quer real, aristocrático, quer democrático", a fim de afugentar a anarquia e promover a união, tranquilidade e independência. Essa declaração gerou desconforto entre alguns deputados, que a consideraram ambígua.
As Facções Políticas: A Assembleia era composta por deputados majoritariamente liberais moderados, sem a existência de partidos políticos formais na época. No entanto, havia três facções discerníveis:
"Bonifácios": Liderados por José Bonifácio de Andrada e Silva, defendiam uma monarquia forte, constitucional e centralizada, buscando evitar a fragmentação do país, como ocorreu na América Espanhola. Eles também pretendiam abolir o tráfico de escravos e a escravidão, além de promover reformas agrárias e o desenvolvimento econômico sem empréstimos estrangeiros. José Bonifácio, inicialmente ministro de D. Pedro I, exercia um papel de liderança, tentando atenuar as divergências. O Imperador se identificava com as ideias dos bonifácios.
"Portugueses Absolutistas": Composto por lusitanos e brasileiros, defendiam uma monarquia absoluta e centralizada, além da manutenção de seus privilégios econômicos e sociais.
"Liberais Federalistas": Incluindo portugueses e brasileiros, pregavam uma monarquia meramente figurativa e descentralizada (se possível, federal), e curiosamente, defendiam a manutenção da escravidão. Eles combatiam veementemente os projetos dos bonifácios.
O Projeto da Constituinte de 1823: O esboço inicial foi escrito por Antônio Carlos de Andrada, com forte influência das Cartas francesa e norueguesa. Algumas de suas características eram:
Era centralizadora, dividindo o país em comarcas (divisões judiciais, não administrativas).
As qualificações para eleitor eram muito mais restritivas do que as da futura Constituição de 1824.
Considerava cidadãos brasileiros apenas homens livres nascidos no Brasil, excluindo escravos que viessem a ser libertados, diferentemente de 1824.
Previa a separação dos três poderes (Executivo ao Imperador), mas a responsabilidade de seus atos recairia sobre os ministros.
Incluía o veto suspensivo do Imperador, que poderia vetar até mesmo o projeto da Constituição.
A relação entre o Imperador e a Assembleia tornou-se tensa, pois os deputados propunham tornar o monarca uma figura simbólica, subordinada ao Legislativo. Essa disputa ideológica, somada a conflitos de interesse e a uma guerra de ataques na imprensa, levou à crise.
A real causa da dissolução da Constituinte foi uma disputa mais profunda. Liberais federalistas e portugueses absolutistas, apesar de suas diferenças, aliaram-se para derrubar o ministério de José Bonifácio. D. Pedro I, influenciado e vendo a maior parte da Assembleia descontente, demitiu os ministros.
A crise se intensificou após um incidente em 5 de novembro, quando um boticário/jornalista brasileiro foi agredido por oficiais portugueses. Os irmãos Andradas aproveitaram para alegar que era um atentado contra a honra do Brasil, gerando uma onda de xenofobia antilusitana. Deputados, como Antônio Carlos e Martim Francisco de Andrada, chegaram a propor a retirada dos direitos civis e a deportação de militares e civis lusitanos.
D. Pedro I, que via a Assembleia à beira da anarquia e temia tornar-se uma figura nula, ordenou ao Exército que invadisse o congresso em 12 de novembro de 1823. Esse evento ficou conhecido como a "Noite da Agonia". Diversos deputados foram presos e exilados, incluindo os três Andradas.
Após a dissolução da Assembleia, D. Pedro I não desejava governar como déspota. Ele encarregou um Conselho de Estado, criado em 13 de novembro de 1823, de redigir um novo projeto de Constituição. Este conselho, composto por juristas renomados e todos brasileiros natos, utilizou como base o projeto da Constituinte, mas com uma mudança crucial: a inclusão do Poder Moderador, que conservava parte do poder absoluto do Imperador.
Outorga vs. Promulgação: A Constituição de 1824 é um exemplo clássico de uma constituição outorgada. Isso significa que ela foi imposta unilateralmente pela vontade do governante (D. Pedro I), sem a participação de uma assembleia constituinte democraticamente eleita. Constituições promulgadas, por outro lado, são elaboradas e aprovadas por uma Assembleia Nacional Constituinte eleita pelo povo.
Processo de Aprovação: O projeto foi enviado às câmaras municipais, que, compostas por vereadores eleitos, sugeriram e votaram pela sua adoção imediata. Assim, a primeira Constituição brasileira foi outorgada e solenemente jurada por D. Pedro I e outras autoridades na Catedral do Império em 25 de março de 1824.
A Constituição de 1824 delineou o Estado Imperial e suas principais definições.
Apesar de ser a carta constitucional de um país escravista, a Constituição de 1824 foi considerada uma das mais liberais de seu tempo, inclusive superando algumas constituições europeias. Ela foi influenciada pelas Cartas francesa de 1791, espanhola de 1812, norueguesa e portuguesa.
Direitos e Garantias Individuais (Art. 179 - FOCO EM CONCURSOS): O artigo 179 incluía um rol de direitos e garantias individuais, uma inovação para a época. Entre eles, destacam-se:
Liberdade de ir e vir.
Liberdade de expressão e imprensa (sem censura prévia, mas com responsabilidade por abusos).
Direito à segurança e propriedade.
Lei igual para todos, sem privilégios de nascimento.
Direito à instrução primária e gratuita.
Fim de punições físicas e torturas (açoites, tortura, marca de ferro quente).
Inviolabilidade do domicílio.
Proibição de prisão sem culpa formada, exceto em casos legais, com juiz informando o motivo e testemunhas.
Proibição de fiança em crimes com pena maior que seis meses de prisão ou degredo.
Independência do Poder Judicial.
Garantia da dívida pública.
Liberdade de trabalho, cultura, indústria e comércio, desde que não ofendam costumes, segurança e saúde.
Fim das corporações de ofício.
Propriedade para inventores.
Inviolabilidade do segredo das cartas.
Responsabilidade dos empregados públicos por abusos.
Direito de petição ao Legislativo e Executivo.
Liberdade Religiosa (EXCEÇÃO/FOCO EM CONCURSOS): Embora o catolicismo apostólico romano fosse a religião oficial do Império, a Constituição permitia a outras religiões o culto doméstico ou particular em casas destinadas a isso, sem "forma alguma exterior de templo". Na prática, protestantes, judeus e outras religiões mantiveram seus templos e uma liberdade de culto quase total. Entretanto, os deputados eleitos deveriam obrigatoriamente professar a religião católica. A Igreja também ficou subordinada ao Estado através do Padroado, que dava ao Imperador o direito de conceder cargos eclesiásticos.
A Constituição de 1824 estabeleceu um governo de monarquia hereditária, constitucional e representativa. O país era formalmente dividido em províncias. A grande inovação e peculiaridade do sistema político brasileiro foi a divisão do poder em quatro esferas:
Poder Legislativo
Poder Executivo
Poder Judiciário
Poder Moderador
O Poder Moderador é um dos temas mais cobrados e peculiares da Constituição de 1824.
Definição e Propósito: Ele era considerado a "chave de toda a organização política". Delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, seu objetivo era "velar sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos". Não era um poder "ativo", mas de supervisão e coordenação.
Origem: A fonte principal do Poder Moderador foi a doutrina do "poder neutro", do estadista francês Benjamin Constant. Constant elaborou esse mecanismo para conciliar a autoridade soberana do monarca com o novo ambiente político pós-Revolução Francesa e Napoleão, evitando tanto o absolutismo quanto a anarquia.
Atribuições do Imperador: O Imperador, que era inviolável e não estava sujeito a responsabilidade alguma, exercia o Poder Moderador através de diversas prerrogativas, como:
Nomear os Senadores (que eram vitalícios, escolhidos de uma lista tríplice).
Convocar a Assembleia Geral extraordinariamente.
Sancionar decretos e resoluções da Assembleia Geral para que tivessem força de lei.
Aprovar e suspender interinamente as resoluções dos conselhos provinciais.
Prorrogar ou adiar a Assembleia Geral, e dissolver a Câmara dos Deputados (em casos extremos, convocando imediatamente outra para substituí-la).
Nomear e demitir livremente os ministros de Estado.
Suspender magistrados (interferindo diretamente no Poder Judiciário).
Perdoar e moderar penas impostas a réus condenados.
Conceder anistia em casos urgentes e pelo bem do Estado.
Críticas: Os liberais da época tendiam a reprovar a grande influência do Imperador sobre os outros poderes, vendo-o como uma forma de absolutismo disfarçado. Frei Caneca, por exemplo, o via como a "chave mestra da opressão".
O Poder Executivo era exercido pelo Imperador, que o fazia por meio de seus ministros de Estado. O Imperador também nomeava os presidentes de províncias.
A Assembleia Geral (Parlamento) era bicameral, composta pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.
Câmara dos Deputados: Eletiva e temporária.
Senado: Composto por membros vitalícios e organizados por eleição provincial, mas nomeados pelo Imperador a partir de uma lista tríplice.
Os juízes eram nomeados pelo Imperador, e o cargo era vitalício. Eles só podiam ser suspensos por sentença ou pelo próprio Imperador.
A Constituição de 1824 definia quem era considerado cidadão brasileiro e estabelecia critérios para a participação política, um tema crucial para concursos.
Definição de Cidadão Brasileiro (Art. 6º - FOCO EM CONCURSOS): Eram considerados cidadãos brasileiros:
Os nascidos no Brasil, fossem ingênuos (filhos de libertos ou de pais livres) ou libertos.
Filhos de pai brasileiro (e ilegítimos de mãe brasileira) nascidos no estrangeiro que viessem a residir no Império.
Filhos de pai brasileiro a serviço do Império no estrangeiro, mesmo sem residir no Brasil.
Todos os nascidos em Portugal e suas possessões que, residentes no Brasil na época da Independência, aderiram a ela (expressa ou tacitamente).
Estrangeiros naturalizados (a lei determinaria as qualidades para a naturalização).
Voto Censitário (FOCO EM CONCURSOS): A Constituição de 1824 instituiu o voto censitário. Isso significa que o direito ao voto era condicionado à comprovação de uma determinada renda anual (o "censo").
Classificação de Cidadãos: A lei estabelecia uma distinção entre:
Cidadãos Ativos: Aqueles com renda suficiente para votar.
Cidadãos Passivos: Aqueles com baixa renda que não tinham direito ao voto (embora o termo "passivo" no contexto de 1824 às vezes se referisse àqueles que votavam nas primárias, mas não podiam ser eleitores de segundo grau).
Processo Eleitoral: As eleições eram indiretas, em dois turnos:
Eleições Primárias (Assembleias Paroquiais): A massa de cidadãos ativos elegia os eleitores de província.
Eleições Secundárias: Os eleitores de província elegiam os representantes da nação e província (deputados e senadores).
Critérios de Renda (Réis anuais):
Para Votar nas Assembleias Paroquiais (eleições primárias): Mínimo de 100 mil réis de renda líquida anual (por bens de raiz, indústria, comércio ou empregos). Essa exigência era considerada baixa, permitindo que boa parte da "população pobre" participasse.
Para ser Eleitor de Província (votar nos deputados/senadores): Mínimo de 200 mil réis de renda líquida anual.
Para ser Candidato a Deputado ou Senador: Mínimo de 400 mil réis de renda líquida anual. Além disso, deviam ser brasileiros natos e católicos.
Exclusões do Voto (FOCO EM CONCURSOS):
Mulheres.
Escravizados (considerados "propriedade" e não cidadãos).
Menores de 25 anos não casados (com exceções para militares acima de 21, bacharéis e clérigos).
Filhos de família na companhia dos pais (salvo se servissem ofícios públicos).
Criados de servir (com exceções para guarda-livros, primeiros caixeiros de comércio, criados da Casa Imperial com galão branco, administradores de fazendas/fábricas).
Religiosos que vivessem em claustro ou comunidade claustral.
Libertos eram excluídos de serem eleitores de província (mas seus filhos e netos poderiam votar).
Analfabetos: Curiosamente, a Constituição de 1824 não excluía analfabetos do voto (nas eleições primárias). Essa restrição só veio com a Lei Saraiva em 1881.
Voto Obrigatório: O voto era obrigatório.
Comparação Internacional: A exigência de renda no Brasil era considerada muito baixa comparada a países como o Reino Unido (onde era bem maior). Em 1870, cerca de 13% da população livre brasileira votava, um percentual superior ao de alguns países europeus.
O país era dividido em províncias. O governo era uma monarquia unitária. A Constituição previa Conselhos Gerais de Província e Câmaras Municipais. O Imperador nomeava os presidentes de província.
Apesar do caráter "liberal" da Constituição de 1824, é crucial analisar como ela se relacionava com o tráfico de escravizados e a exploração da mão de obra negra, que eram a base da construção do país.
O Apagamento da Escravidão: A Constituição de 1824 é notável por suas apenas duas breves menções a "ingênuos" e "libertos", e a quase completa ausência de menções a "escravizados" ou ao próprio sistema escravista, que sustentava todo o Império. Esse "apagamento" ou "silenciamento" é parte de um "arcabouço institucional" para manter uma aparente "democracia racial".
Manutenção Legal da Escravidão: Intelectuais e políticos da época estabeleceram meios legais para a manutenção da escravidão. A Constituição, ao garantir o direito de propriedade em toda a sua plenitude (Art. 179, § 22), indiretamente legitimava a escravidão, pois seres humanos eram tratados como mercadoria e objeto de propriedade.
O Conceito de Propriedade: Como o filósofo Achille Mbembe aponta, o africano escravizado era o "protótipo e o prenúncio de toda a propriedade que surgirá posteriormente na modernidade". A "coisificação" do ser humano era possível pela raça, desumanizando-o através do racismo. Essa "propriedade absoluta" permitia ao senhor não apenas emprestar, doar, arrendar ou vender o escravizado (inclusive como garantia em bancos, como na fundação do Banco do Brasil), mas também torturá-lo, mutilá-lo e estuprá-lo. Essa visão absolutista da propriedade ainda hoje dificulta reformas que busquem distribuir a propriedade privada no Brasil.
Marginalização e Racismo Institucionalizado: A Constituição e as leis subsequentes perpetuaram a marginalização dos negros.
A Lei de Terras (posterior à Constituição, mas com a mesma lógica) dificultava a ocupação de terras por pessoas pobres.
A Lei Saraiva (de 1881) excluiu o direito ao voto dos analfabetos, o que impactava desproporcionalmente a população negra, majoritariamente não-alfabetizada devido à falta de acesso à educação.
As "fronteiras entre liberdade e escravidão eram sempre incertas e fluidas para os libertos", pois sua raça tornava sua condição de liberdade precária, reforçada por normas de vigilância e punição, e o "grande testemunho de liberdade do liberto ainda era a voz emanada da casa-grande".
A Negação da Cidadania aos Negros: Mesmo após a Independência e com a Constituição de 1824, a população negra, de forma geral, não foi vista como cidadã plena pelo Estado brasileiro. Estatísticas mostram que a tortura e a falta do devido processo legal são legitimadas pelo Estado quando se trata de pessoas negras em zonas periféricas.
A Luta pela Cidadania: Paradoxalmente, a população negra e os povos indígenas foram (e ainda são) os que mais lutaram e exercem cotidianamente o verdadeiro conceito de cidadania no país, buscando igualdade e justiça social. Revoltas como a Revolução Haitiana de 1791 (onde negros lutaram por liberdade e independência) e a Rebelião dos Malês (no Brasil) demonstram a "agência da população negra" na disputa pelo direito. Mais recentemente, a luta por ações afirmativas no ensino superior é um exemplo dessa busca contínua.
Eurocentrismo no Ensino: O professor Marcos Queiroz critica o ensino no Brasil, especialmente no direito e outras áreas de humanas, por ser eurocêntrico, apagando a contribuição das populações africana e indígena. Ele defende a necessidade de revisão das doutrinas e a curricularização do ensino das relações étnico-raciais para combater o racismo estrutural.
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca (1779-1825), nascido em Pernambuco, foi um dos intelectuais mais importantes a criticar veementemente a Constituição de 1824.
Um Intelectual e Revolucionário: Educado na tradição cristã, professor de geometria, retórica e filosofia, Caneca participou da Revolução Pernambucana de 1817 (que pregava liberdade de imprensa e tolerância religiosa). Defensor da instauração de uma república constitucional, ele acreditou inicialmente que D. Pedro I representaria os movimentos liberais, com uma monarquia parlamentarista de poder limitado, como na Inglaterra.
A Rebelião Contra a Outorga: Quando D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte e outorgou a própria Constituição, instituindo o Poder Moderador, Frei Caneca se rebelou. Para ele, a soberania do povo vinha em primeiro lugar. Ele defendia a autonomia das províncias e a representação legítima no governo central, expressando suas ideias em seu jornal, o Typhis Pernambucano.
Por Que Não Era uma "Verdadeira Constituição": Frei Caneca não considerava a Carta de 1824 uma "verdadeira Constituição", mas um "projeto de constituição". Para ele, a dissolução da Assembleia significava a "evaporação da liberdade política" e o estabelecimento do absolutismo, com a recolonização interna do Brasil através da escravidão.
Principais Críticas de Frei Caneca (FOCO EM CONCURSOS): Em seus escritos, ele elencou diversos aspectos inaceitáveis da Constituição, entre eles:
Indefinição e Potencial de Cessão Territorial: O projeto não determinava positivamente o território do império, e o Executivo (art. 102) poderia ceder ou trocar território independentemente da Assembleia Geral.
Poder Moderador como Opressão: Ele o via como a "chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos". Criticava a capacidade do Imperador de dissolver a Câmara dos Deputados (representante do povo), enquanto o Senado (representante dos "apaniguados" do Imperador) permanecia intacto.
Subdivisão das Províncias e Desunião: A permissão para novas subdivisões das províncias (art. 2º) era vista como uma estratégia para enfraquecê-las, introduzir rivalidades e sujeitá-las ao Executivo, transformando a nação em "diversas hordas de povos desligados e indiferentes entre si, para melhor poder, em última análise, estabelecer-se o despotismo asiático".
Excesso de Poder dos Ministros e Senadores: Ministros de Estado podiam propor leis, assistir a discussões e votar como senadores e deputados, o que lhes daria controle sobre a Assembleia Geral. Ele também criticava a Câmara dos Deputados por ser "quase escrava" da Câmara dos Senadores.
O Pacto Social de Frei Caneca (Ideias Avançadas): Frei Caneca desenvolveu "Bases para a formação do Pacto Social", com apenas 32 artigos, que carregavam verdadeiras ideias liberais e progressistas para a época, antecipando pautas que seriam debatidas séculos depois.
Abolição da Escravatura: Defendia a abolição da escravatura 64 anos antes da Lei Áurea.
Direitos Humanos e Restrição do Poder Punitivo do Estado: Incluía pontos que seriam abordados na Constituição de 1988, como a proibição de prisão arbitrária, a necessidade de lei prévia para punição, a irretroatividade da lei penal e penas proporcionais aos delitos.
Liberdade de Imprensa e Expressão: Artigos 3º e 4º do pacto social garantiam a liberdade de manifestar sentimentos e opiniões sobre qualquer objeto, e que "tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido".
A Confederação do Equador: As Câmaras Municipais de Olinda e Recife rejeitaram a Constituição outorgada. Em julho de 1824, foi proclamada a Confederação do Equador, um movimento revolucionário que previa um projeto republicano radical e visava priorizar o poder legislativo e suspender o tráfico negreiro no porto do Recife. No entanto, a restrição à escravidão gerou divergências e enfraqueceu o movimento, atingindo interesses rurais. Frei Caneca foi condenado à morte como um dos líderes dessa Confederação.
A Constituição de 1824, com seus 65 anos de vigência, moldou profundamente o Primeiro e o Segundo Reinado no Brasil.
Reformas Importantes: Embora "semi-rígida" e permitindo algumas alterações por lei ordinária, ela recebeu duas modificações significativas:
Ato Adicional de 1834: Promoveu uma descentralização política e administrativa durante o Período Regencial, criando as Assembleias Legislativas Provinciais e o "governo econômico e municipal", conferindo maior autonomia às províncias. Para alguns, isso trouxe características básicas do federalismo à monarquia, mesmo que não em sua concepção plena.
Lei Saraiva (1881): Esta reforma eleitoral eliminou a eleição em dois turnos, introduziu o voto direto e facultativo e permitiu o voto dos libertos e não-católicos. Contudo, ela também trouxe uma mudança restritiva: os analfabetos não eram mais permitidos votar. Isso resultou em uma drástica queda do eleitorado (de 13% para 0,8% em 1886).
O Parlamentarismo no Império: Apesar de ter iniciado como uma "monarquia presidencialista", o sistema evoluiu para um modelo parlamentarista. A criação da Presidência do Conselho de Ministros em 1847 por D. Pedro II deu mais autonomia ao poder executivo e consolidou o parlamentarismo brasileiro, facilitando a distinção entre o Poder Executivo e o Poder Moderador. O Parlamento brasileiro ganhou grande valor, sendo palco de importantes decisões e debates.
Fim da Vigência: A Constituição de 1824 foi revogada com a Proclamação da República e substituída pela Constituição de 1891.
Comparação com a Constituição de 1988 (Constituição Cidadã): Existem profundas diferenças entre as Constituições do século XIX e a atual.
Ambas consagram a opção liberal pelo governo representativo.
No entanto, a Constituição de 1988, resultado de séculos de lutas e conquistas, prevê direitos sociais, civis e políticos muito mais amplos e mecanismos mais rigorosos para protegê-los.
As instituições desenhadas em 1988 visam um regime democrático que seria impensável no início do século XIX.
Para consolidar o conhecimento e responder às dúvidas mais comuns, confira estas perguntas e respostas rápidas:
Qual foi a primeira Constituição do Brasil? A primeira Constituição do Brasil foi a Constituição Política do Império do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824.
Quem outorgou a Constituição de 1824? Foi outorgada por D. Pedro I, o primeiro imperador do Brasil, após dissolver a Assembleia Constituinte de 1823.
O que foi o Poder Moderador na Constituição de 1824? O Poder Moderador foi um dos quatro poderes do Estado (além do Executivo, Legislativo e Judiciário), exercido exclusivamente pelo Imperador. Ele era a "chave de toda a organização política", com o objetivo de harmonizar e equilibrar os demais poderes, concedendo ao Imperador amplas prerrogativas, como dissolver a Câmara dos Deputados e nomear senadores e ministros.
A Constituição de 1824 aboliu a escravidão? Não. A Constituição de 1824 não aboliu a escravidão. Embora não a mencione explicitamente em profundidade, ela legitimava a escravidão ao garantir o direito absoluto de propriedade, o que incluía a posse de seres humanos.
O que era o voto censitário na época da Constituição de 1824? O voto censitário era um sistema eleitoral que restringia o direito ao voto com base na renda mínima anual do cidadão. Apenas homens livres com uma determinada renda podiam votar nas eleições primárias, e rendas ainda maiores eram exigidas para ser eleitor de segundo grau ou candidato a cargos legislativos.
Por que a Assembleia Constituinte de 1823 foi dissolvida (Noite da Agonia)? A Assembleia Constituinte de 1823 foi dissolvida por D. Pedro I em 12 de novembro de 1823 (a "Noite da Agonia") devido a conflitos de poder. Os deputados buscavam limitar o poder do Imperador e tornar a monarquia mais simbólica, enquanto D. Pedro I desejava manter um controle significativo e se recusava a ser uma figura decorativa. Disputas entre facções políticas e ataques na imprensa também contribuíram para a crise.
Quanto tempo durou a Constituição de 1824? A Constituição de 1824 foi a que mais tempo vigorou no Brasil, permanecendo em força por 65 anos, de 1824 até 1891, quando foi substituída pela Constituição da República.
A Constituição de 1824 é um documento complexo e contraditório. Embora apresentasse elementos liberais avançados para a época, como um extenso rol de direitos individuais e a liberdade de culto (ainda que restrita), ela foi imposta pelo Imperador, consolidou seu poder através do Poder Moderador e, fundamentalmente, manteve e invisibilizou o sistema escravista que sustentava a economia e a sociedade brasileira.
Seu estudo é essencial para compreender as bases da organização política do Brasil Imperial, as tensões entre centralização e autonomia, e o longo e árduo caminho da luta por uma cidadania plena e inclusiva no país. Ao analisar suas características, suas exceções e as críticas que recebeu (como as de Frei Caneca), é possível ter uma visão mais completa e aprofundada desse período histórico tão definidor para o Brasil.
Questões:
Quem outorgou a Constituição de 1824 no Brasil?
a) Dom Pedro II
b) Dom João VI
c) Dom Pedro I
d) Dom Manuel I
Qual era o objetivo da centralização do poder no governo imperial, conforme estabelecido pela Constituição de 1824?
a) Promover a descentralização administrativa
b) Unificar o país e evitar a fragmentação política
c) Conceder autonomia total às províncias
d) Estabelecer um governo republicano
Quais foram algumas das restrições impostsas aos direitos políticos pela Constituição de 1824?
a) Voto censitário e proibição do voto aos analfabetos
b) Voto universal e igualdade de gênero no voto
c) Voto censitário e voto feminino obrigatório
d) Voto livre e aberto a todos os cidadãos
Gabarito:
c) Dom Pedro I
b) Unificar o país e evitar a fragmentação política
a) Voto censitário e proibição do voto aos analfabetos