O romance brasileiro, desde seu surgimento após a Proclamação da Independência, foi fundamental para a construção do imaginário nacional e para a reflexão sobre a relação entre literatura e nação. Percorrer essa trajetória é essencial para compreender a sociedade, a política e a estética do país.
A seguir, apresentamos a evolução do romance no Brasil em uma ordem didática, do mais fundamental ao mais complexo.
A prosa romântica marcou a introdução do Romantismo no Brasil, influenciada por padrões europeus, mas buscando o estímulo e a valorização da arte e do sentimento nacional.
Uma das principais forças motrizes da prosa romântica foi o folhetim, essencial para o mercado editorial da época e frequentemente cobrado em exames.
Mecanismo e Difusão: O folhetim consistia em capítulos de romances publicados semanalmente em jornais.
Transformação Social: Por meio dele, o romance se popularizou, a literatura deixou de ser um bem exclusivo da aristocracia, e o sentimento de democracia se espalhou, alcançando o leitor comum e formando o público leitor incipiente do Brasil.
O nacionalismo no Romantismo foi vital para desvincular a arte brasileira da influência impositiva portuguesa. As características centrais incluem:
Nacionalismo e Ufanismo.
Subjetivismo e Idealismo.
Idealização da mulher e Amor platônico.
Culto à natureza e Estética nativista.
A prosa romântica se manifestou em três vertentes principais, que exaltavam as peculiaridades da cultura nacional:
Este gênero buscava valorizar o índio como herói nacional, explorando o heroísmo, a nobreza de caráter e o sentimentalismo.
Autor Prioritário: José de Alencar (1829-1877) é o principal expoente, considerado por alguns o criador desse estilo. Seu projeto era de ficcionalizar a história brasileira, abrangendo diversos tempos e espaços.
Obras Centrais: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).
O Romance Urbano focava no retrato do comportamento social da época, retratando a pequena burguesia, a ascensão da classe média e as relações morais e sociais na capital do Império, o Rio de Janeiro.
Exemplos: A Moreninha (Joaquim Manoel de Macedo), Memórias de um Sargento de Milícias (Manoel Antônio de Almeida), Diva e Senhora (José de Alencar).
Este gênero representava o povo fora da Corte, focando no ambiente rural, nos costumes e paisagens do sertão, em oposição às cidades.
Exemplos: O Sertanejo (José de Alencar), A Escrava Isaura (Bernardo Guimarães), Inocência (Visconde de Taunay).
Pergunta Obvia: O indianismo romântico, especialmente o de Alencar, era apenas um apoio ufanista ao Império?
Resposta Didática (Exceção/Complexidade): Não. Embora a literatura indianista romântica fosse emblemática do esforço para construir um projeto literário unificado que reforçasse a iconografia oficial e a unidade territorial do Segundo Império, apagando a história real das populações indígena e negra, a relação de Alencar com a monarquia foi complexa, dinâmica e por vezes contraditória.
A publicação dos três romances indianistas de Alencar reflete momentos distintos de sua relação com Pedro II e a monarquia, indo além de um apoio abstrato e irrestrito:
O Guarani (1857): Momento de Afirmação e Lealdade. Publicado após uma polêmica com Gonçalves de Magalhães, Alencar estende a mão à monarquia. O romance entrelaça a fundação do Brasil (o encontro entre Peri e Ceci) com a instauração da monarquia de Bragança. O respeito e a vassalagem (simbolizada na relação entre os rios Paquequer e Paraíba) são centrais para a ordem e a sobrevivência do clã Mariz.
Iracema (1865): Melancolia e Crítica ao Esgotamento Político. Publicado quando o modelo da "política da conciliação" mostrava sinais de esgotamento. O romance incorpora um tom pessimista e melancólico, alinhado às críticas que Alencar fazia ao sistema político nas suas Cartas de Erasmo. Embora continue a ser uma alegoria nacionalista, a fundação do Brasil é vista através da dor e do abandono de Iracema ("o nascido do meu sofrimento"), sugerindo que o novo país não parecia tão promissor.
Ubirajara (1874): Distanciamento Estético da Monarquia. Publicado após Alencar ter sua ambição de se tornar senador barrada por Pedro II e em meio ao avanço da causa abolicionista (contra a qual Alencar se posicionava). Para se distanciar da coroa, Alencar evita o tema do encontro entre portugueses e indígenas. O romance é situado em um passado que precede a colonização, focando na mitologia guerreira e na pesquisa etnográfica, esvaziando o indianismo de seu caráter mais instrumental para o Império.
O Realismo no Brasil adota uma postura de abordagem crítica e objetiva, contrastando com a idealização romântica.
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), nascido de pais humildes, tornou-se a figura mais importante da literatura brasileira, sendo o maior representante do Realismo brasileiro.
A obra de Machado é didaticamente dividida em fases, sendo a segunda fase (realista) a mais cobrada e essencial:
Início da Fase Realista: Marcada pela publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Outras Obras Centrais: Quincas Borba, Dom Casmurro e Memorial de Aires (1908).
Machado de Assis publicou obras que constituem o melhor acervo do Realismo brasileiro. Seus romances da segunda fase constroem personagens cujas vidas são centradas no cotidiano do homem comum, utilizando técnicas narrativas complexas.
Ironia e Humor: O autor utiliza o humor e a ironia para construir uma narrativa que analisa ironicamente a forma como a sociedade se comporta, expondo-a e analisando-a simultaneamente.
Pessimismo e Psicologia: A literatura machadiana é marcada pelo pessimismo e pela análise psicológica profunda, denunciando os interesses escondidos da personagem e a vileza mascarada de boa compostura.
Linguagem Refinada: A linguagem é clara e objetiva, com uma narrativa lenta focada na introspecção.
O Humanitismo (Exceção Filosófica): Em Quincas Borba, é introduzida a filosofia do Humanitismo, que, ironicamente, reflete a luta pela sobrevivência e a modernidade brasileira.
Visão Crítica: Sua obra retratou os acontecimentos da época (passagem da monarquia à república) com ironia, focando nas mazelas da sociedade.
O Humanitismo, filosofia defendida pelo personagem Quincas Borba, pode ser resumida na ideia da subsistência e da luta pela vida. Um fragmento famoso utiliza a metáfora das batatas: as batatas chegam para alimentar apenas uma das tribos, [e] a outra morre. Esta alegoria reflete o pessimismo machadiano em relação à natureza humana e à modernidade brasileira.
O Modernismo, desencadeado pela assimilação das vanguardas europeias e pela busca de uma valorização do que era nacional, divide-se didaticamente em três fases. Para o romance, a Segunda Geração (Fase de Consolidação) é decisiva.
A década de 1930 é considerada a “era do romance” no Brasil. Este período foi marcado por inquietação política, mudanças sociais e novas atitudes estéticas.
Foco Temático: Esta geração foi marcada pela preocupação social e política, e pelo regionalismo, destacando-se na prosa da região Nordeste.
Postura: Foi uma fase construtiva, na qual a piada (característica da 1ª fase modernista, a Fase Heroica) foi substituída pela gravidade de espírito, com uma postura séria em relação ao mundo.
Busca Nacional: Caracterizou-se pelo encontro do autor com seu povo e pela busca do homem brasileiro em diversas regiões.
O Romance de 30 é frequentemente delimitado ao conjunto de autores e obras situados no Nordeste.
Temas Centrais: Os escritores dessa geração consolidaram questões sociais graves, como a desigualdade social, a vida cruel dos retirantes, os resquícios de escravidão e o coronelismo.
Inovação de Linguagem: Os autores criaram um estilo completamente moderno, liberto da linguagem tradicional, incorporando a real linguagem regional e as gírias locais.
Os principais ciclos e autores incluem:
Ciclo Regional | Autor Principal | Obras Exemplares | Foco Temático |
A Seca (Nordeste Seco) | Graciliano Ramos | Vidas Secas (1938), São Bernardo (1934) | Miséria, condição humana, linguagem. |
A Seca (Pioneirismo) | Rachel de Queiroz | O Quinze (1930) | Pioneira do romance da seca. |
A Cana-de-Açúcar | José Lins do Rego | Menino de Engenho (1932), Fogo Morto | Decadência do mundo rural, análise psicológica. |
O Cacau | Jorge Amado | Cacau (1933), Terras do Sem Fim | Questões trabalhistas e sociais na Bahia cacaueira. |
Pergunta Obvia: Por que o Nordeste é frequentemente associado à seca e à miséria, e qual o papel de Vidas Secas nisso?
Resposta Didática (Exceção/Complexidade): Vidas Secas, de Graciliano Ramos, publicado em 1938, marcou a consolidação editorial e imagética do "Nordeste Seco".
A Transmutação de Imagens: O Nordeste já havia sido retratado sob duas tendências editoriais: a da cana-de-açúcar (José Lins do Rego) e a do cacau (Jorge Amado), que representavam o "Nordeste da Abundância". Esta imagem, consoante com os interesses do Império (árvores gordas, bois pachorrentos, opulência), foi gradualmente substituída pelo "outro Nordeste".
O Fio Narrativo da Seca: A trilha narrativa do Nordeste Seco, iniciada por A Fome (Rodolfo Teófilo) e Os Sertões (Euclides da Cunha), estabeleceu-se com O Quinze (Rachel de Queiroz). Vidas Secas (Graciliano Ramos) galvanizou o Nordeste Seco, fornecendo uma síntese regional que se tornaria o clichê mais incontornável.
O Papel da Literatura: O Romance da Seca emprestou grande vigor à cena cultural brasileira, assimilando a figura do migrante sertanejo como sinônimo de nordestino.
A Questão da Miséria (Exceção/Crítica): É crucial notar que a miséria não é causada exclusivamente pela seca. O fenômeno da migração reflete desequilíbrios regionais e ciclos econômicos predatórios. Em Vidas Secas, Fabiano, o vaqueiro, migra sem grandes esperanças, mas o patrão (o proprietário) simplesmente se desloca para a cidade e retorna após a estiagem, indicando a relação entre miséria e propriedade, e não apenas o clima. Reduzir o romance à miséria é ignorar a abordagem de temas como linguagem, desigualdade e opressão.
Após a Terceira Geração Modernista (1945-1960), que buscou a literatura intimista (Clarice Lispector) e um regionalismo com sondagem psicológica (Guimarães Rosa), a produção literária contemporânea, especialmente a partir do século XXI, se destaca pela diversidade de vozes e pela experimentação formal.
Estudos sobre os romances brasileiros publicados entre 1965 e 2014 revelam um padrão de exclusão no campo literário:
Espaço Social Restrito: O romance brasileiro contemporâneo privilegia a representação de um espaço social limitado.
Personagens Dominantes: As personagens são, em sua maioria, brancas, do sexo masculino e das classes médias.
A Permanência de Estereótipos: Sobre outros grupos, os estereótipos persistem:
Mulheres brancas: Aparecem predominantemente como donas-de-casa.
Mulheres negras: Representadas como empregadas domésticas ou prostitutas.
Homens negros: Frequentemente representados como bandidos.
As mudanças ao longo do tempo, embora existam, não são de grande monta, e o campo literário tende a reproduzir os padrões de exclusão da sociedade brasileira.
Na esteira dos movimentos sociais, a literatura do Século XXI tem dado voz a grupos que foram historicamente invisibilizados, tornando-se cada vez mais comum o sucesso de autores negros, indígenas e periféricos.
Um movimento que ganhou força a partir dos anos 2000 foi a literatura escrita por mulheres. Juntamente com isso, a emergência de vozes negras e livros que tematizam a cultura afro-brasileira é uma marca importante.
Conceição Evaristo: Reconhecida como um dos principais nomes, transita entre romances (Ponciá Vicêncio, 2003), contos e poemas, e tem sido tema de provas de vestibular.
Itamar Vieira Júnior: Autor de Torto Arado (Grande sucesso editorial), que tematiza as relações com a terra, religião, exploração e o descaso governamental que atravessam as Comunidades Quilombolas.
Diferentemente do Romantismo, que idealizava e tematizava a questão indígena por um viés eurocêntrico (José de Alencar), hoje há um movimento crescente de vozes indígenas narrando suas próprias histórias. A eleição de Ailton Krenak para Imortal da Academia Brasileira de Letras (o primeiro indígena a ocupar essa posição) mostra o reconhecimento do pensamento dos povos originários.
A literatura contemporânea observa uma aproximação de outras formas de expressão artística, sobretudo de origem popular e periférica. As fronteiras entre a letra de canção e a poesia se tornam instáveis ou evanescentes.
O Rap tem sido integrado ao cânone literário em vestibulares (como na inclusão do álbum Sobrevivendo no Inferno dos Racionais MCs na Unicamp).
Valor Literário: A sigla RAP significa Rhythm and Poetry (Ritmo e Poesia).
Poesia Oral Contemporânea: Pesquisadores defendem que o Rap brasileiro reúne recursos formais que o caracterizam como uma manifestação da poesia oral contemporânea. As letras de rap, ao serem abordadas em provas, são tratadas como expressões literárias.
O Slam Poetry (Batalha de Poesia), surgido nos EUA na década de 1980, alcançou grande público no Brasil, sendo realizado nas ruas e praças (como o Slam da Guilhermina, em São Paulo).
Formato: Competições de poesia falada, onde o poeta (slammer) apresenta poemas de autoria própria em até 3 minutos, sem acompanhamento musical, adereços ou auxílio visual.
Performance: A composição é defendida através de performances que utilizam o corpo e a voz como instrumento.
Relevância: O Slam resgata a tradição da literatura oral dentro do cenário urbano e já foi tema de vestibulares, como o ENEM 2020.
Período/Fase | Característica Chave | Exceções/Tópicos Complexos | Autores e Obras Essenciais |
Romantismo (Séc. XIX) | Nascimento da Prosa de Ficção e Busca por Identidade Nacional. | O Folhetim como agente de popularização. A relação complexa e política de Alencar com o Império. | José de Alencar (O Guarani, Iracema), Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha). |
Realismo (Final Séc. XIX) | Análise Psicológica, Pessimismo, Ironia e Crítica Social. | Machado de Assis como o grande nome; foco no pessimismo e na análise do homem comum. O Humanitismo de Quincas Borba. | Machado de Assis (Memórias Póstumas, Dom Casmurro, Quincas Borba). |
Modernismo (Romance de 30) | Ênfase no Social, Regionalismo Crítico (Nordeste) e Consolidação Editorial. | A transmutação da imagem do Nordeste da Abundância para o Nordeste Seco. A prosa engajada e a denúncia de problemas graves. | Graciliano Ramos (Vidas Secas), Rachel de Queiroz (O Quinze), José Lins do Rego, Jorge Amado. |
Contemporâneo (Pós-2000) | Diversidade de Vozes e Experimentação Formal. | A persistência de estereótipos e a representação restrita. O rompimento das fronteiras literárias (Rap e Slam). A emergência de autores negros e indígenas. | Conceição Evaristo (Ponciá Vicêncio), Itamar Vieira Júnior (Torto Arado), Ailton Krenak. |