Para compreender a influência de Poe no Brasil, é fundamental dominar o seu estilo e contexto literário.
Edgar Allan Poe (1809–1849) é uma das principais referências da literatura gótica e um dos criadores do conto moderno nos Estados Unidos. Sua literatura é marcada por mistério, macabro e loucura.
Matéria-Prima do Gótico: O repertório gótico, que Poe domina, trata de temas obscuros que desafiam a moral comum, usando o horror como base, corroborando com o mistério, a monstruosidade e o medo.
O Terror Psicológico (Foco em Concursos): A estética gótica de Poe é um mergulho nas profundezas do inconsciente humano, explorando medos, vícios e obsessões incontroláveis. Poe encara a obscuridade do psicológico perturbado de seus protagonistas.
Temas Recorrentes: Morte, enlouquecimento, alienação, amor e perda.
Recursos Estilísticos: Sua escrita utiliza metáforas, comparações e sinestesia, com uma certa musicalidade e estilização que remete à sua poesia.
Como as obras de Poe chegaram ao Brasil no século XIX?
A literatura e a cultura brasileiras, após a independência em 1822, estavam fortemente influenciadas por paradigmas franceses. O fluxo de livros e jornais em francês era considerável entre a elite, especialmente no Rio de Janeiro.
O Fator Baudelaire (Foco em Exceção/Concurso): A grande influência de Poe, não apenas nos EUA, mas em outros países, deu-se através das traduções para o francês feitas por Charles Baudelaire.
Recepção no Império: Machado de Assis, por exemplo, embora soubesse inglês e tenha traduzido "O Corvo" diretamente, a crítica tende a acreditar que ele foi atraído a Poe pela divulgação de Baudelaire.
Poe Conhecido: Mesmo que a concentração de obras e avaliações críticas localizadas no Brasil entre 1865 e 1916 fosse pequena, percebeu-se que Poe era uma figura conhecida dos leitores da época, dado o número relevante de menções ao seu nome encontradas em periódicos.
A narrativa gótica não teve um momento específico de ascensão no Brasil, mas esteve presente em obras de escolas literárias, notadamente no Romantismo.
A fase mais diretamente ligada à estética de Poe é a Segunda Geração Romântica (ou Ultra-Romântica, ou Mal do Século), que ocorreu aproximadamente entre 1850 e 1860.
As Duas Grandes Influências: Essa fase é marcada pelas inspirações em Lord Byron (trazendo o pessimismo romântico) e, crucialmente, em Edgar Allan Poe (introduzindo mistérios e fantasia).
Temáticas Góticas no Romantismo: Esta geração era marcada por temas como a morte, o pessimismo, a fuga da realidade e o subjetivismo exacerbado, alinhando-se diretamente aos temas sombrios e macabros que flertam com o horror, tipicamente poeanos.
Estilo de Vida "Byroniano" e Poeano: O modo de vida boêmio de Lord Byron, juntamente com a literatura pessimista, influenciou essa geração (Geração Byroniana). Os autores da época, inspirados por Poe e Byron, promoviam narrativas sombrias e macabras, com uma atmosfera onírica, buscando um escape da realidade.
Os escritores ultrarromânticos tecem narrativas que refletem a complexidade da psique humana e a fascinação pela morte.
Autor | Obra Central | Conexão com o Gótico Poeano |
Álvares de Azevedo (Precursor) | Noite na Taverna | Considerado o grande representante da 2ª Geração. A obra é um marco, contendo contos de mistério, horror e tragédia em uma atmosfera sombria. Lira dos Vinte Anos também contém temas de amor, morte e melancolia, com uma "pitada de romantismo gótico". |
Casimiro de Abreu | As Primaveras | Embora mais conhecido pelo sentimentalismo e exaltação da natureza, sua obra mantém a constante (e pessimista) certeza da morte, um tema central em Poe. |
Fagundes Varela | Cantos e Fantasias | Autor de prosa romântica e amarga, suas temáticas envolvem amores melancólicos e reflexões sobre a morte. |
A influência de Poe não se restringiu ao Romantismo. Ela se manifesta em dois pilares da literatura brasileira em diferentes épocas: Machado de Assis (Contos e Intertexto) e Lygia Fagundes Telles (Gótico Contemporâneo).
Machado de Assis (1839-1908) e Poe são frequentemente comparados. Ambos privilegiaram o conto como gênero por excelência para retratar indivíduos em momento de crise e em busca de identidade. Machado admirava Poe, chamando-o de "um dos melhores contistas norte-americanos".
Machado defendia a necessidade de um caráter nacional para a literatura brasileira e lamentava a pequena presença do conto no país.
Características Compartilhadas: Machado discute as características do conto, como brevidade e unidade, aspectos amplamente discutidos por Poe em seus ensaios sobre poesia e contos.
Fundadores do Gênero: Ambos se colocam como figuras centrais na criação do gênero conto em suas respectivas literaturas nacionais.
Machado incorporou a imagética, topos e estética de Poe, muitas vezes subvertendo-as para seu próprio projeto literário e de identidade nacional.
Conto de Machado | Echo em Poe | Análise e Subversão Machadiana |
"A chinela turca" (1875) | "O Poço e o Pêndulo," "A Máscara da Morte Rubra" | Usa o Fantástico e a intrusão onírica. A presença de um pêndulo opressor (em um quarto da mansão) marca a passagem do tempo e a iminência da morte, ecoando a opressão claustrofóbica de Poe. Machado utiliza um tom mais leve, de sarcasmo e amargura, enquanto Poe é mais denso. |
"O Espelho" (1882) | "William Wilson," "O Gato Preto," "A Queda da Casa de Usher" | Tema do Duplo e do universo da mente. Machado define duas almas (interna/religiosa e externa/reconhecimento social). A subversão está no objetivo: enquanto os personagens de Poe buscam destruir seu duplo, o Alferes de Machado busca o duplo (uniforme/reconhecimento social) para se manter íntegro e salvar-se da destruição psíquica. |
"Só!" (1885) | "O Homem da Multidão" | "O homem da multidão" de Poe é precursor do olhar sobre a cidade como tema literário. Machado estabelece um diálogo intertextual direto. O protagonista de Poe é o "gênio do crime", um homem que se recusa a estar só. O protagonista de Machado, Bonifácio, teme enlouquecer com a solidão e corre para a cidade (Rio de Janeiro, ainda pacata) para que o burburinho anestesie seu sofrimento. Machado contrasta a complexidade da Londres industrializada de Poe com o Rio de Janeiro de sua época. |
Lygia Fagundes Telles (1923-2022), uma das principais referências da Terceira Geração do Modernismo (Geração de 45), também se insere na literatura gótica.
Ponte de Semelhanças: Embora separados por escolas literárias e tempo (Poe no Romantismo; Telles no Modernismo), ambos compartilham temas recorrentes como morte, grotesco, sobrenatural e subjetivismo.
O Insólito e o Fantástico: A semelhança surge da presença do insólito—elementos na narrativa que não são coerentes com a realidade exterior, gerando hesitação no leitor. O insólito leva ao conceito de Literatura Fantástica (Todorov), que ocupa o tempo da incerteza, vacilando entre as leis naturais e o aparentemente sobrenatural.
A análise comparativa entre O Coração Delator (Poe) e Venha Ver o Pôr do Sol (Telles) evidencia o gótico brasileiro e a influência de Poe no terror psicológico.
Característica | "O Coração Delator" (Poe, 1843) | "Venha Ver o Pôr do Sol" (Telles, 1988) |
Narrador | Primeira pessoa (Narrador anônimo, tentando provar sua sanidade) | Terceira pessoa |
Opressão Psicológica | O narrador é obcecado pelo "olho de abutre" do velho. A paranoia é intensificada pela audição do coração pulsante da vítima (símbolo inanimado). | Ricardo orquestra um plano sombrio para prender Raquel em uma catacumba. O terror se constrói no desfecho, revelando a plurissignificação de "último encontro" e "o pôr do sol mais lindo do mundo". |
Suspense e Quebra de Expectativa | O narrador confia em sua sanidade ao receber a polícia, mas a confissão é forçada pela alucinação do coração batendo. | O leitor (e Raquel) desconfia da intenção de Ricardo, mas a quebra de expectativa se dá na revelação brutal do seu encarceramento no cemitério abandonado. |
Conexão Gótica | Sadismo e dissimulação do narrador anônimo. | Frieza e meticulosidade de Ricardo ao executar seu plano. |
Em suma: Ambos os contos exploram o terror psicológico e a dissimulação no comportamento dos personagens, extrapolando a conduta normativa de uma sociedade.
A presença de Poe na cultura brasileira moderna se manifesta na tradução por grandes nomes e em adaptações para a mídia, reforçando sua relevância didática.
Dois dos maiores nomes da literatura brasileira atuaram como tradutores de Poe, um fato muito cobrado em estudos acadêmicos e, ocasionalmente, em concursos que exigem profundidade.
Machado de Assis e "O Corvo" (The Raven):
Machado foi o primeiro brasileiro a traduzir The Raven (1845).
A sua tradução de "O Corvo" é considerada mais próxima da versão francesa de Charles Baudelaire do que do poema original em inglês.
Detalhe Didático: Ao traduzir a primeira estrofe, Machado usou o verso "De uma velha doutrina, agora morta", que se relaciona com a expressão francesa d’une doctrine oubliée de Baudelaire, e não diretamente com a forgotten lore de Poe.
Clarice Lispector e "O Gato Preto" (The Black Cat):
Clarice Lispector (1920-1977) traduziu/adaptou o conto The Black Cat (1843).
Estudos apontam que as traduções e adaptações de tradutores não profissionais como Machado e Clarice implicaram em diferenças linguístico-culturais em relação à língua de origem.
Poe desmistificou a ideia de que o poema é fruto apenas da inspiração, defendendo que a construção é racional.
A Filosofia da Composição: Em seu tratado The philosophy of composition (1846), Poe utilizou "O Corvo" como exemplo de seu método de criação. Ele concluiu que o efeito máximo é causado pela Beleza.
A Escolha Temática: Poe optou por um tom melancólico e pelo tema da morte do ser amado (Lenora). O clímax é a certeza de que nunca mais a encontrarão, culminando na resposta do corvo: "Nunca mais!" (Nevermore).
A presença de Poe é tão forte que suas narrativas foram transpostas para o cenário urbano brasileiro contemporâneo.
A Série: Contos do Edgar é uma série de TV em cinco episódios, veiculada pela Fox Brasil em 2013.
Adaptação Brasileira: A série adaptou os contos de Poe, transpondo suas histórias para a cidade de São Paulo nos dias de hoje. O personagem principal, Edgar, trabalha na dedetizadora "Nunca Mais".
Exemplos de Adaptações: O episódio "Berê" foi inspirado em Berenice; "Íris" em O Coração Delator & O Demônio da Impulsividade; e "Lenora" em O Barril de Amontillado & O Gato Preto.
Reforço Temático: Em qualquer análise da influência de Poe no Brasil, os conceitos abaixo são indispensáveis:
Literatura Gótica: Temas sombrios, exploração do medo e do terror psicológico.
Ultrarromantismo/Mal do Século: A 2ª geração do Romantismo que absorveu a estética da morte, melancolia e horror de Poe e Byron.
Insólito/Fantástico: O elemento da narrativa que gera incerteza no leitor, hesitando entre o real e o imaginário (conceito de Todorov).
Intertextualidade com Machado: Foco na subversão do tema do Duplo ("O Espelho") e a referência direta ao homem solitário na metrópole ("Só!" e "O Homem da Multidão").
A obra de Poe é de destaque nas aulas de literatura no Ensino Fundamental brasileiro. Contudo, uma análise mais aprofundada pode focar em como autores de países colonizados (como os EUA no século XIX, em relação à Europa) refletem padrões ideológicos da metrópole imperialista, ao mesmo tempo que buscam valorizar aspectos locais.
Dupla Visão: Poe oscila entre uma cosmovisão colonialista e pós-colonialista. O subgênero da ficção científica (do qual Poe é considerado um fundador), em suas mãos, assume um viés satírico aos europeus em sua etnocentricidade.
A dificuldade de tradução de poesia, exemplificada em "O Corvo," está em equilibrar forma e conteúdo.
Pessoa vs. Machado: Fernando Pessoa tentou manter a forma (métrica e rimas), mas sacrificou algumas imagens de Poe. Machado, influenciado por Baudelaire, apresentou uma tradução mais próxima da versão francesa, sacrificando a forma original de Poe, mas mantendo o conteúdo próximo da visão de Baudelaire.
Estratégias de Tradução (Lefevere): A tradução poética envolve estratégias variadas, como a tradução fonêmica, literal, métrica, ou a interpretação (versão, imitação), onde se mantém o conteúdo alterando a forma, ou se tem pouca relação com o poema fonte, respectivamente. Esta é uma área de estudo valiosa para entender as escolhas de Machado e Pessoa.
A influência de Edgar Allan Poe no Brasil vai além do óbvio Romantismo. Ela permeia a estruturação do conto nacional por Machado de Assis, a modernização do terror psicológico por Lygia Fagundes Telles, e a presença contínua em nossa cultura midiática e acadêmica, fazendo dele um dos autores estrangeiros mais cruciais para o estudo da Literatura Brasileira.