O romance Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa, é considerado uma das obras mais importantes da literatura brasileira e lusófona. Seu impacto se deve, em grande parte, à ruptura radical com a linguagem e a estrutura narrativa tradicional, promovendo uma revolução linguística. Rosa acreditava que somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo.
Exploramos os aspectos fundamentais da escrita rosiana que causam o primeiro impacto no leitor e que definem o tom da obra.
Para Guimarães Rosa, a linguagem e a vida são uma coisa só. Ele via o idioma como o espelho da personalidade e acreditava que a linguagem deveria evoluir constantemente, acompanhando a corrente contínua da vida. O escritor deve prestar contas de cada palavra, considerando-a até que ela seja novamente vida.
Rosa defendia que a linguagem corrente, saturada de clichês e expressões domesticadas, expressa "apenas clichês e não ideias". Sua missão era explorar o "ileso gume do vocábulo [...] jamais usado" para revelar o "sentido prisco" (significação original, primitiva) da palavra.
Uma dúvida comum é se a obra é apenas regionalista. Embora o cenário se passe nos sertões de Minas Gerais, Bahia e Goiás, e utilize uma dicção regionalista, o projeto de Rosa é discorrer sobre elementos universais.
O Sertão é o Mundo: Grande Sertão: Veredas eleva o sertão à condição de locus hominis, onde se debatem os grandes problemas humanos, como a luta do homem contra a natureza e o destino. Riobaldo chega a dizer: "o sertão é do tamanho do mundo".
Contraste e Paradoxismo: A linguagem visceralmente regionalista contrasta com a dimensão universal da narrativa, configurando o paradoxismo sertão-grande sertão.
Diálogo Social: O estilo rosiano busca ser uma "volta por cima" da linguagem dos letrados. Ao fazer o jagunço Riobaldo narrar sua história a um interlocutor culto da cidade ("o senhor") por cerca de 500 páginas, Rosa chama a atenção para a falta de diálogo entre as classes no Brasil. O romance é um "laboratório de diálogo social" que ainda não existe na realidade.
A narrativa é construída sob a forma de um monólogo ininterrupto, mas que se apresenta como um diálogo velado com um interlocutor desconhecido ("o senhor", "moço", "doutor"), que é um homem instruído da cidade.
Traços do Interlocutor: A presença do interlocutor é marcada pela repetição do pronome de tratamento "o senhor" (cerca de 980 vezes) e pelas perguntas e retomadas que Riobaldo faz, compondo a figura de um "hábil inquiridor, simpatizante e letrado".
Metalinguagem (Tópico de Concurso): O narrador está constantemente pondo em xeque a própria técnica de narrar. Riobaldo reflete sobre seu próprio ato de contar, com frases como: "Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas devagadas".
Incerteza e Busca: Riobaldo narra para dissipar suas dúvidas existenciais, buscando ajuda no interlocutor. O romance é uma estrutura de pergunta, marcada pelo motivo "Contar é muito, muito dificultoso".
Este nível detalha as ferramentas estilísticas que Rosa utiliza para revitalizar o material linguístico, com foco nos neologismos e na sintaxe subversiva, que são frequentemente cobrados em exames.
A metáfora é o tropos privilegiado e elemento central dos efeitos de sentido na ficção rosiana. Surge frequentemente na reiteração de imagens, amplificada pela sintaxe subversiva.
Metáfora como Desvio: Para os estudiosos, a metáfora é um desvio, uma transposição de uma palavra que, levada de um conceito a outro, adquire uma ideia diversa e inesperada. A palavra utilizada como metáfora não apresenta o sentido do senso comum do dicionário.
Metáfora Sintático-Lexical: A metáfora rosiana se constitui a partir de um jogo imagético. Um exemplo é a inversão sintática em "voar preto" ("marrecos voavam pretos para o céu vermelho"). O preto do voar antecipa a escuridão da noite, funcionando como uma prolepse.
Acúmulo de Metáforas: Em muitas passagens, há um acúmulo de metáforas em curtos períodos, atuando de forma sinestésica (apelo a mais de um sentido humano). Por exemplo, na descrição da luz no ar: "chuva fina", "cristal", "teias de aranha" e "fumacinha".
Alegoria (Metáfora Discursiva): A alegoria é uma metáfora que abrange o efeito de sentido geral de um texto. Narrativas como Grande Sertão: Veredas são alegorias que figurativizam a luta do bem contra o mal. A arte de Rosa está em construir metáforas que são símiles no microtexto da alegoria que as engloba na macroestrutura narrativa.
Rosa inventa novas palavras e resgata o significado primeiro dos vocábulos. Seu esforço lexical visa a apresentar o novo e surpreender o leitor.
A neologia de sentido (ou semântica) é a alteração mais sutil e didaticamente mais complexa, pois consiste no uso de um significante já existente na língua com um novo conteúdo.
Função da Estrutura Frasal: Para que o novo sentido surja, é fundamental a estrutura da frase, que implica uma ruptura nas regras de combinação.
Exemplo 1: Verbo "Amortizar" (Mutação Sêmica - Cobrado em Concurso): No dicionário, "amortizar" significa extinguir dívidas ou abater. Em GSV, na frase "Será que fosse para o urucuiano Salustio no primeiro descuido meu me amortizar?", o sentido é contaminado por "extinguir", "aniquilar", "matar". O traço sêmico /não-animado/ (dívida) é substituído pelo traço /animado/ (o objeto direto "me").
Exemplo 2: Verbo "Viajar" (Mudança na Subcategorização): No enunciado "[...] vejo esses vaqueiros que viajam a boiada", o verbo "viajar" (normalmente intransitivo) adquire transitividade direta, significando /fazer viajar/, /acompanhar/.
Afixação: Adição de afixos para alterar ou intensificar o significado. Exemplo: "sozinhozinho" (repetição do sufixo diminutivo para reavivar a expressividade original de "muito só").
Aglutinação (Palavras Portmanteau): Combinação de significantes de duas ou mais palavras para criar um neologismo que contenha os significados de todas elas. Exemplos:
"nenhão" (nenhum + não).
"fechabrir" (fechar + abrir, conciliação de opostos).
"prostitutriz" (prostituta + meretriz).
"sussurruído".
"adormorrer".
Onomatopeia e Aliteração: Rosa utiliza a iteração onomatopaica e o ritmo da melopeia. Exemplo: na descrição da propagação do fogo: "pé-pé-pé-pé-pé!". Ou, na descrição da água da cachoeira: "anhanhonhacanhuva" e "bilo-bilo". A aliteração (repetição de sons consonantais) também é constante, como o /v/ anafórico em "vôo verde das aves itinerantes".
A contribuição estilística mais autêntica de Rosa reside na sintaxe intrincada e retorcida. Ele subverte a ordem convencional.
Manipulação da Posição: A manipulação sintática ocorre ao modificar a posição dos vocábulos ou expressões no interior dos períodos.
Inversão da Ordem Tradicional: A inversão da ordem tradicional dos vocábulos (o que confere um traço erudito/neo-barroco ao estilo). Exemplo: Em vez de "marrecos pretos voavam", ele escreve "marrecos voavam pretos". Outro exemplo é a prosopopeia na descrição da lagoa: "tirou do seu pólo rombo dois córregos".
Justaposição e Construções Elípticas: Uso de orações justapostas e construções elípticas, típicas da linguagem oral, preferindo a coordenação sobre a subordinação.
Enumeração Acumulativa: Enumeração de palavras da mesma classe gramatical e campo semântico (barroco na manifestação sintagmática). Exemplo: lista de sons do gado ("ronflos, grunhos, arruos, balidos, gatimios...").
Neste nível, examinamos as teorias estruturais e filosóficas que explicam a complexidade do protagonista e a profundidade da obra, essenciais para uma análise completa.
O romance é considerado polifônico. O conceito, cunhado por Mikhail Bakhtin, descreve romances em que o universo de sentido é plural e a construção dos atores é a representação de consciências múltiplas, nunca de um "eu" único. Riobaldo, o herói, é inconcluso e indefinível.
Concerto de Vozes: Na polifonia, o poder é dividido, e os cruzamentos de ideias e valores não se concentram em uma única consciência. Riobaldo escuta e processa todas as vozes do romance, numa posição catalisadora.
Dialogismo Velado: Mesmo sendo um monólogo (com a voz de Riobaldo predominando), ele é um diálogo sumamente tenso, pois cada palavra de Riobaldo responde e reage ao interlocutor invisível. Há um ajustamento de vozes entre Riobaldo e "o senhor".
Riobaldo Cindido (O Inacabamento): Riobaldo é um ser cindido, atravessado por vozes equipolentes (jagunço e paladino, ódio e amor, bem e mal). Ele assume a narrativa, mas se biparte (Riobaldo personagem e Riobaldo narrador-ficcional). Sua consciência sobre o mundo é da ordem do inacabamento.
A sociossemiótica de Landowski expande a análise da interação, adicionando os regimes de ajustamento e acidente à programação e manipulação. Essa teoria ajuda a entender por que Riobaldo se sente um "joguete" do destino.
A Lógica da União (Ajustamento e Acidente): Nesses regimes, os objetos de valor são construídos pelo contágio, pelo contato direto, pelo sensível.
Programação e Manipulação (Lógica da Junção): Regidos pela regularidade e intencionalidade (previsibilidade e busca por objetos de valor). O jagunço Hermógenes, por exemplo, age conforme o papel temático previsto (programação).
Ajustamento (Princípio da Sensibilidade): O sujeito sente o sentir do outro em uma relação direta, corpo a corpo. O sentido é criado em ato, não tem resposta antecipada, implicando alto grau de risco.
Acidente (Princípio da Aleatoriedade): O completo acaso que escapa de qualquer previsibilidade, como os fenômenos naturais ou a súbita descontinuidade. O risco é total, podendo beirar o absurdo ou a perda de sentido.
Riobaldo, o ator do enunciado polifônico, está regido pelo sentir e pelo imprevisto. Ele circula entre os regimes de Landowski.
Riobaldo Pré-Pacto (Ajustamento e Acidente): Sua natureza é a incerteza. Ele está próximo dos regimes da união (sensível).
O Pacto (Tentativa de Manipulação): Riobaldo busca o pacto com o Diabo para adquirir a competência (poder-fazer/saber-fazer) e vencer Hermógenes, tornando-se o Urutú-branco. No parecer-ser, ele se torna endurecido e autoritário (regido pela intencionalidade/manipulação).
A Verdade (Ajustamento Latente): Contudo, a mudança é apenas no nível do parecer-ser. O Riobaldo narrador-ficcional revela que, em seu íntimo, ele continuava no regime do sensível, do ajustamento. O pacto pode ter sido um ajustamento com o meio, naquele ambiente frio e escuro.
Após a Morte de Diadorim (Retorno ao Risco): Ao descobrir o segredo de Diadorim e enfrentar a dor, Riobaldo retorna à constelação da aventura, deslizando entre o ajustamento (namorando uma palmeira) e o acidente (perdendo seu nome, sua saúde, mergulhado no caos da tristeza).
O enunciatário (o leitor) é mantido na constelação da aventura, sendo forçado a preencher lacunas e enfrentar o caos.
Abordamos aqui as dúvidas mais óbvias e recorrentes que os estudantes enfrentam ao se depararem com a obra:
A dificuldade de leitura, comum aos "leitores de primeira viagem", está ligada às inovações formais de Rosa e à complexidade da experiência que o livro sugere.
Não-linearidade: A história é contada conforme os caprichos da memória de Riobaldo, indo e voltando no tempo.
Estranhamento Linguístico: Rosa exige uma nova postura do leitor. Ele usa o recurso do estranhamento (ostranienie) para eliminar conotações desgastadas e explorar a face oculta do signo. O leitor é forçado a sentir a frase "meio exótica".
Processo Ativo: O caráter inacabado e dialogado da narrativa força o leitor, que era mero consumidor passivo, a se tornar um participante ativo e colaborador do processo criador.
Diadorim é uma figura central da ambiguidade e do Princípio de Reversibilidade da obra.
Paradoxo e Incerteza: Diadorim é a representação do masculino e do feminino, do celeste e do demoníaco, da certeza e da dúvida. Sua identidade oculta (uma mulher) e sua morte marcam o ponto de virada trágico para Riobaldo.
Lacuna de Sentido: A lacuna entre o que o narrador (Riobaldo idoso) sabe e o que o observador (Riobaldo jagunço) não sabia (sobre a identidade de Diadorim) é uma marca da polifonia.
A arte rosiana é um discurso que se origina em disposições morais, afetivas e intelectuais, constituindo uma doutrina de comportamento humano. A subversão da linguagem que ele empreende é uma subversão do mundo que ele mimetiza, sendo esta a sua ética de ação e de intervenção social.
Compromisso do Coração: O processo de revitalização da linguagem era visto por Rosa como um "compromisso do coração".
Denúncia do Mal: A obra descreve bandos de criminosos exercendo o poder no planalto central, sendo o retrato de uma sociedade onde o crime faz parte do sistema político. Rosa aguça a percepção do leitor para as "formas do falso" nos discursos, revelando como a retórica é forjada.
A linguagem em Grande Sertão: Veredas não é um mero ornamento, mas sim uma forma de "traduzir mais verdadeiramente o real".
Guimarães Rosa atinge a metáfora sintático-lexical através de um labor constante de revitalização linguística:
Utilizando metáforas acumulativas e sinestésicas.
Criando neologismos por aglutinação (ex: "fechabrir") e neologia semântica (ex: "amortizar").
Empregando uma sintaxe subversiva com inversões e justaposições.
Construindo um protagonista polifônico e cindido (Riobaldo), que se move entre a manipulação e o ajustamento/acidente (constelação da aventura).
Essa complexa arquitetura exige que o leitor saia da "bengala dos lugares-comuns" e se obrigue a sentir a "novidade" nas palavras e na sintaxe, tornando a leitura uma travessia perigosa, mas essencial, para a expansão da consciência, pois, como diz Riobaldo, "Viver é muito perigoso".