A representação da mulher na literatura, seja como personagem ou como autora, é um tema de extrema relevância acadêmica e social, frequentemente exigido em provas e concursos públicos. Este campo de estudo analisa como o gênero feminino foi retratado ao longo da história literária, majoritariamente dominada pela perspectiva patriarcal.
A partir da Crítica Literária Feminista, que se baseia na teoria feminista, buscamos entender as formas pelas quais a literatura historicamente consolidou a narrativa da dominação masculina.
A Crítica Literária Feminista é a vertente teórica que aplica os princípios do feminismo para analisar a linguagem e o contexto da literatura.
A crítica feminista busca analisar e descrever as maneiras pelas quais os textos literários incorporam fatores econômicos, sociais, políticos e psicológicos que perpetuam a dominação masculina. Historicamente, até a década de 1970 (durante a primeira e segunda ondas do feminismo), ela se concentrava em duas áreas principais:
A exclusão das mulheres do cânone literário e a questão da autoria.
A representação da condição das mulheres e das personagens femininas fictícias na literatura.
Trabalhos mais modernos estendem o foco para as estruturas patriarcais enraizadas em aspectos da sociedade, como educação, política e trabalho. O objetivo final é descobrir e expor tensões patriarcais subjacentes em obras literárias e tornar a literatura mais acessível a um público abrangente.
O desenvolvimento do feminismo impulsionou o processo histórico-literário da escrita feminina, sendo útil a divisão em "ondas" para concursos que exigem contextualização histórica:
Primeira Onda (Século XIX e início do XX): Foco na destruição da supremacia masculina, especialmente no Reino Unido e nos Estados Unidos.
Segunda Onda (Década de 1960 em diante): Continua a luta por direitos igualitários e o fim da discriminação. É neste período que a crítica literária feminista moderna ganha raízes, questionando a literatura centrada na visão de mundo masculina que retratava mulheres sob modelos de humilhação e opressão. Autoras como Mary Ellman, Kate Millett e Germaine Greer desafiaram concepções do feminino na academia.
Terceira Onda (Década de 1990 em diante): Surge para corrigir as limitações das ondas anteriores, que focavam predominantemente em mulheres brancas de classes média/alta. Busca-se a inclusão de diferentes categorias de identidade, como raça, classe e orientação sexual (Interseccionalidade).
Certos textos são pilares indispensáveis para entender a luta feminina no campo literário, sendo de leitura obrigatória para aprofundamento.
A escritora inglesa Virginia Woolf é uma referência fundamental, e seu ensaio Um teto todo seu (1929) é considerado uma pedra angular da crítica literária feminista.
A tese central de Woolf é que "a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se pretende mesmo escrever ficção". O ensaio articula a importância da independência financeira para a liberdade e a escrita. A obra revela a invisibilidade da mulher no universo intelectual até tempos muito recentes e analisa a função da escrita no contexto da opressão feminina.
Woolf argumenta que, mesmo reunindo talento e condições para escrever, as mulheres nem sempre teriam leitores. Ela arrisca declarar que “‘Anônimo’, que escreveu tantos poemas sem cantá-los, com frequência era uma mulher”. O anonimato era, ironicamente, uma estratégia de visibilidade, pois um desconhecido teria mais chance de ser lido do que uma mulher.
Além disso, Woolf defendia a diversidade na representação e na vida: "Seria mil vezes uma pena se as mulheres escrevessem como os homens, ou vivessem como eles, ou se parecessem com eles, pois se dois sexos é bastante inadequado, considerando a vastidão e a variedade do mundo, como faríamos com apenas um”.
A filósofa e teórica social francesa Simone de Beauvoir deixou um legado atemporal, sendo seu livro O Segundo Sexo uma "Bíblia do Feminismo".
Esta é a citação mais famosa de Beauvoir. Ela expressa a visão básica do feminismo: a desnaturalização do ser mulher. Beauvoir discute em que ponto e sob que circunstâncias o sujeito feminino alcança a autonomia, indo além do ideal de posses proposto por Woolf.
Imanência vs. Transcendência: Beauvoir explica o dilema existencial feminino usando a Filosofia. A imanência da mulher é a vocação de agradar e ser definida por expectativas e clichês. A transcendência, a vocação do homem (e do sujeito livre), reside em projetos concretos (casas que constrói, doenças que cura). A mulher, para transcender e justificar sua existência, precisa lutar contra a imanência esperada.
Oportunidade vs. Felicidade vs. Liberdade: Beauvoir desafia a ideia de que felicidade (como a da mulher do harém ou da dona de casa) é superior à liberdade, uma vez que a liberdade é a substância do ser.
A tradição literária, sob influência da cultura patriarcal, perpetuou a repetição de estereótipos femininos, culminando na homogeneização da experiência da mulher.
Para a Crítica Feminista, os modelos repetitivos (estereótipos) são conceitos convencionais, simplificados e carentes de individualidade. Zolin (2009) destaca três principais estereótipos recorrentes nas obras literárias:
Estereótipo | Características (Exemplos de Ellmann) | Conotação | Exemplo em Orgulho e Preconceito |
1. Mulher/Anjo e/ou Indefesa/Incapaz | Informidade, passividade, recato, piedade, espiritualidade, aceitação. | Positiva (único modelo ideal). | Jane Bennet: Piedosa e capaz de sacrifício pelos outros, cuidando da casa para não incomodar as irmãs. |
2. Mulher Sedutora/Perigosa/Imoral | Instabilidade, materialidade, irracionalidade. | Negativa. | Lydia Bennet: Caracterizada pela constante agitação, busca por riqueza/casamento (materialidade) e comportamento imprudente/irracional (fuga com Wickham). |
3. Mulher como Bruxa ou Megera | Ser bruxa ou ser megera. Orgulho e crueldade de modos. | Negativa. | Lady Catherine de Bourgh: Imperativa, orgulhosa e indelicada, exigindo que tudo seja feito à sua maneira e desconsiderando classes sociais mais baixas. |
Qualquer personagem que fugisse ao modelo de "mulher anjo" recebia uma conotação negativa ou de rejeição.
Escritoras procuraram apresentar representações femininas alternativas para escapar às convenções patriarcais. Estratégias incluem:
O "Heroinismo": Uma forma de feminismo literário que apresenta a heroína intelectual, apaixonada, viajante ou pesquisadora.
Representação Positiva de Personagens Fortes: Mulheres independentes dos protagonistas masculinos.
Focalização em Áreas Exclusivamente Femininas: Experiências de nascimento, estupro ou ser ignorada pelos homens.
Jane Austen usa Elizabeth Bennet como um modelo de ruptura. Ela foge dos padrões de sua sociedade, que giravam em torno de obter um casamento.
Insubordinação e Independência: Elizabeth recusa duas propostas de casamento (Sr. Collins e Darcy), demonstrando uma independência que, em outras personagens, acarretaria conotação negativa.
Intelectualidade: Ela defende-se das investidas de Darcy usando sua alta intelectualidade.
Heroinismo: É inteligente, viaja, descobre, aprende e se apaixona, não estando limitada a um ambiente ou dependente dos outros.
Conformismo Subversivo: Seu eventual casamento com Darcy é por amor e felicidade, e não por conforto material, subvertendo o padrão patriarcal imposto. Elizabeth é uma heroína que rompe com os padrões sem que o leitor a rejeite.
O clássico de Machado de Assis, Dom Casmurro, é um estudo de caso fundamental em concursos sobre representação feminina, pois expõe o desafio da voz da mulher em uma sociedade patriarcal.
A personagem Capitu é vista exclusivamente através do olhar do narrador-personagem, Bento Santiago, que é intencionalmente interessado na construção de uma certa imagem dela. Bento utiliza um discurso patriarcal e falocêntrico, próprio de sua época (Século XIX), que via a mulher como um ser submisso e sem direito à distinção intelectual no mundo dos homens.
Capitu era descrita com grandes atributos: bela, astuta, sagaz, inteligente e com capacidade de pensar rápido, sobressaindo-se em situações complicadas. Bentinho transforma essa inteligência em algo perigoso: "fingimento", "manipulação" e "astúcia" ultra-sutil.
O narrador, por sua vez, é caracterizado como alguém com imaginação fértil, ciúme doentio, e que confessa ter memória fraca, o que sugere a possibilidade de que os fatos narrados sejam "engendrados através de esquecimentos ou de falsas lembranças". Sua mãe, Dona Glória, é descrita como uma "santa", em contraste com a imagem de "monstro" que ele projeta em Capitu, inserindo-se no modelo polarizado da primeira fase da crítica feminista: mulher como anjo ou monstro.
Capitu é a personagem feminina que não tem de fato uma voz na narrativa. Seu silêncio é uma das questões mais discutidas:
A Visão de Bentinho: Para o marido ciumento, o silêncio da esposa diante das acusações de traição serviu como uma confissão de culpa.
A Crítica Feminista (Hellen Caldwell): Caldwell afirma que a narrativa de Bentinho é uma "grande defesa em causa própria". O silêncio da mulher no século XIX, submetida à tutela do pai ou do marido, era uma forma submissa de evitar o confronto e preservar a integridade moral.
O Silêncio como Denúncia: Capitu, privada de defesa pelo seu acusador, prefere silenciar para manter sua dignidade ferida. Seu isolamento (exílio na Suíça e morte) simboliza a manutenção da ordem patriarcal que não suporta a mulher que se destaca. O silêncio de Capitu, portanto, é a única possibilidade que o narrador lhe concede, garantindo a Bentinho ser o "senhor soberano de sua narrativa".
A partir dos anos 1960, a mulher se tornou objeto de estudo em diversas áreas, impulsionando a Crítica Feminista. A produção literária de autoria feminina surge com a missão de "contaminar" os esquemas representacionais ocidentais construídos em torno do sujeito masculino (homem, branco, bem situado socialmente) com outras perspectivas.
A literatura brasileira contemporânea, escrita por mulheres, pensa e contesta as "amarras e as máscaras imputadas às mães". Há uma ruptura na representação romantizada da maternidade, onde as personagens mães são escritas em sua subjetividade, compostas por imperfeição, dor, amor, falha e medo—sendo, de fato, humanizadas.
Carolina Maria de Jesus (Casa de Alvenaria): Retratou as dificuldades de conciliar a carreira de escritora com o cuidado da casa e dos três filhos, descrevendo momentos de estresse e a insatisfação com a "reinação" dos filhos.
Mãe o cacete (Ivana Arruda Leite): Desconstrói a figura materna idealizada, com a protagonista relatando lembranças ruins da mãe, que batia, dava beliscões e não demonstrava afeto. Essa narrativa rompe com o moralismo social ao apresentar a mulher como sujeito da enunciação.
Outras Obras Analisadas: Uma Duas (Eliane Brum), A morte de Paula D. (Brisa Paim), O peso do pássaro morto (Aline Bei), Quarenta dias (Maria Valéria Rezende), A vida invisível (Eurídice Gusmão) e A Chave de Casa (Tatiana Salem Levy).
Hilda Hilst (pertencente à Geração de 45/terceira geração modernista) é uma das principais escritoras brasileiras, conhecida por sua personalidade forte, intensa e transgressora.
Hilst era uma mulher à frente de seu tempo, usando uma linguagem petulante. Na tentativa de ganhar reconhecimento e protestar, ela assumiu um estilo de escrita mais ousado e intenso, deslocando-se para uma linguagem mais erótica e, por vezes, pornográfica, como em O caderno rosa, de Lori Lamby e Contos d´escárnio.
Em A Obscena Senhora D (1982), a personagem Hillé vive o luto pela perda do companheiro Ehud, questionando sua existência, a velhice e a solidão.
A "Obscenidade" e a Transgressão: A escrita de Hilda, ao ser erótica e pornográfica, era uma forma de protesto contra o machismo e a censura histórica da literatura escrita por mulheres. Ela sofria críticas por ser mulher e abordar a sexualidade.
Isolamento e Paratopia: Hillé, ao morar no "vão da escada", simboliza o sentimento de abandono (Derrelição) e a exclusão que a própria autora sentia em relação aos demais escritores no cânone literário dominado por homens.
A literatura feita por mulheres em Portugal, a partir da Geração da Repensagem (Lídia Jorge, Eduarda Dionísio, Teolinda Gersão), trouxe a conquista da liberdade, identidade feminina e da escritura.
A novíssima geração de escritoras (Djaimilia Pereira de Almeida, Márcia Balsas e Ana Bárbara Pedroso) diferencia-se, colocando o individual sobre o coletivo.
Márcia Balsas (Voar no quarto escuro): Apresenta uma galeria de mulheres infelizes e marcadas pelo desencontro, onde a solidão, a falta de comunicação e a dor são transversais. O foco é a crise das relações pessoais.
Ana Bárbara Pedrosa (Lisboa, chão sagrado): Renova na linguagem e aborda fortemente a temática do sexo, focando nos seus desdobramentos: relações homoafetivas com diferença de idade, preconceito social contra o transexual, casamento tradicional e racismo. O perfil é da sociedade contemporânea e seus dilemas íntimos.
Djaimilia Pereira de Almeida (Esse cabelo): Utiliza a autoficção para questionar os parâmetros eurocêntricos através da metáfora do cabelo. O livro aborda a questão étnica da exclusão e a crise de pertença, onde o cabelo crespo simboliza a identidade e a ascendência africana.
Essa nova literatura revela as sequelas sociais, os pequenos grandes dramas humanos que ultrapassam as fronteiras, expondo o preconceito de gênero, o racismo e a crise de identidade.
Para concursos e exames que exijam conhecimento aprofundado, os seguintes pontos são essenciais:
Conceito/Obra | Foco Principal | Relevância para Exames |
Virginia Woolf (Um teto todo seu) | Necessidade de independência financeira e espaço físico (o teto) para a escrita feminina. O anonimato como estratégia. | Questões sobre as condições materiais da produção artística feminina e o cânone. |
Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo) | "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher." Oposição entre Imanência (o que se espera da mulher) e Transcendência (a busca por liberdade e projetos). | Fundamento do feminismo e decolonialidade/construção social do gênero. |
Estereótipos Femininos | Os três modelos clássicos: Anjo, Sedutora/Perigosa, Megera. A mulher é negativada se não se encaixa no modelo Anjo. | Análise de personagens em textos clássicos (por exemplo, como Elizabeth Bennet rompe o padrão). |
Crítica Feminista | Estudo da linguagem da literatura a partir da teoria feminista, focando na dominação masculina. Métodos de descompactação literária para expor o patriarcado. | Perguntas teóricas sobre escolas de crítica e metodologia. |
Representação da Maternidade | Ruptura com o estereótipo romantizado, expondo a subjetividade, falhas, dor e medo das mães. Casos como Carolina Maria de Jesus e Mãe o cacete. | Análise de literatura brasileira contemporânea e temas sociais (exigência crescente em bancas). |
Capitu (Dom Casmurro) | O silêncio da mulher no século XIX. O discurso falocêntrico e manipulador de Bento Santiago, que usa ciúme e imaginação para condenar a personagem forte. | Questões de narrador subjetivo, discurso patriarcal e teoria crítica da obra clássica. |
Hilda Hilst | Transgressão, escrita obscena e erótica como protesto. A solidão e a busca incessante pelo divino. | Literatura brasileira de vanguarda e autoria feminina transgressora. |
Lisa Tuttle definiu a teoria feminista como uma abordagem que formula "novas questões de textos antigos". Seus objetivos incluem desenvolver e descobrir a tradição feminista na literatura, reinterpretar o simbolismo das mulheres, reencontrar textos antigos, analisar autoras sob uma perspectiva feminina e resistir ao sexismo na literatura. Isso é crucial para a releitura de obras canônicas como Dom Casmurro.
A escrita de autoria feminina vem ganhando destaque, empoderando mulheres e ampliando seu papel na sociedade. A utilização da Crítica Feminista como estratégia teórica é fundamental para o compreendimento da mulher-sujeito na cena histórico-literária.
A mulher-sujeito se configura como insubmissa aos paradigmas do patriarcalismo e detentora do poder de decisão e dominação de si mesma. A vasta produção literária feminina, que surgiu à medida que o feminismo conferiu à mulher o direito de falar, continua a "re-escritura de trajetórias, imagens e desejos femininos", sendo um instrumento contínuo de protesto e liberdade.
Reconhecer e debater essa produção literária, que vai além do "pontual e eufórico" para se conjugar a todo um processo histórico-literário, é essencial para transformar a realidade de preconceito e violência.