Este nível estabelece a base para entender a obra, situando-a no tempo e no movimento literário brasileiro.
O romance "Angústia", de Graciliano Ramos, foi escrito em 1936. Pertencendo ao Modernismo brasileiro, é classificado dentro do que se convencionou chamar de "Romance de 30".
A obra, embora seja contemporânea à tendência de escrita Modernista que buscava estabelecer uma identidade própria à formação brasileira, se destaca por abordar o campo da condição existencial e a reflexão sobre o estar no mundo, algo intrigante para a época de sua publicação.
O clima sufocante e denso de Angústia pode ser relacionado à assustadora ascensão do fascismo e suas nefastas ressonâncias no Brasil durante o período que antecedeu e culminou no Estado Novo. A narrativa foi escrita em um momento de Estado de exceção.
Graciliano Ramos foi preso sem processo ou acusação formal, de março de 1936 a janeiro de 1937. Angústia foi lançado enquanto o autor ainda estava encarcerado. A atmosfera da narrativa, com seu mundo concentracionário e sua densidade opaca, reflete a história brasileira daqueles anos.
Aqui, detalhamos a estrutura da trama e os principais agentes da história, focando na biografia e nos dilemas do protagonista.
O romance apresenta como protagonista Luís da Silva, um rapaz de 35 anos. Ele é oriundo do campo, mas migra para a cidade na esperança de melhorar suas condições de vida.
Na cidade, ele é um funcionário de repartição (um contínuo) com aptidões literárias e gosto pela escrita. Sua vida é caracterizada pela miséria moral e pela degradação da vivência humana.
Luís da Silva é um decadente, um proscrito. Carrega os valores da oligarquia rural em ruínas — ele é neto de Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, um decadente senhor de escravizados. Seu nome abreviado (reduzido a um "Silva" qualquer) simboliza a medida de sua queda social. Ele não possui poder aquisitivo nem autoestima elevada, o que o leva a se enclausurar em si mesmo.
O protagonista é um anti-herói, um desajustado medíocre que compensa sua fraqueza através do crime. Antonio Candido o descreve como um "meticuloso vencido" que odeia os outros, mas, antes de tudo, odeia a si mesmo.
O sofrimento de Luís da Silva começa a se intensificar com a chegada de Marina, a vizinha vaidosa e cheia de vida que desperta seu interesse. Eles se envolvem em um namoro e chegam a noivar, mas Luís é incapaz de arcar com os custos de uma festa ou de uma vida conjugal estável.
O rompimento ocorre quando Marina se une a Julião Tavares. Julião é o antípoda de Luís da Silva, representando tudo o que Luís desejava ser e ter: riqueza, prestígio, influência social e boas condições financeiras herdadas. Julião Tavares encarna a burguesia arrivista, o poder do dinheiro que substituiu a antiga posição social herdada (a oligarquia colonial).
A rivalidade se transforma em ódio. Luís da Silva nutre por Julião Tavares um misto do que rejeita nele (sua robustez física) e do que gostaria de ser, possuindo uma relação complexa de ódio e inveja. A figura de Julião Tavares é vista pela crítica como uma espécie de duplo de Luís da Silva, encarnando tudo o que lhe falta.
O ódio acumulado e o sentimento de inferioridade levam Luís da Silva a desejar liquidar o rival. O estopim para o assassinato é quando Julião Tavares engravida Marina e a abandona.
A Tocaia (emboscada) torna-se o caminho para o crime. Luís da Silva enforca Julião e simula um suicídio, pendurando-o em uma árvore.
A técnica da tocaia jagunça, uma prática arcaica do mundo rural (onde Luís tem suas raízes) voltada para o crime, se amalgama à introspecção (uma técnica moderna de análise) na mente de Luís da Silva. O crime é a radicalização de sua impotência.
Pergunta Obvia/Dúvida Comum: O crime resolveu o problema de Luís da Silva? Não. Ao eliminar Julião, Luís não se liberta do sentimento de angústia. Ele é tomado por outra angústia: o medo de ser descoberto. O seu propósito de livrar-se do motivo da ira se torna seu próprio calvário. O sentimento que o impulsionou ao ato se instaura de forma perene.
Dúvida Comum/Exceção: O crime realmente aconteceu? O tom da narrativa é delirante. Luís da Silva abre e fecha sua confissão delirando, sendo que a não separação entre o real e o irreal é uma das tônicas da personalidade do protagonista. Por conta disso, alguns críticos levantam a hipótese de que o assassinato de Julião Tavares pode nem ter acontecido de fato.
Este nível aborda as características formais que fazem de Angústia uma obra singular (e uma exceção na produção de Graciliano Ramos), sendo um ponto crucial para análise aprofundada em concursos públicos sobre a técnica literária do autor.
Angústia é narrado em primeira pessoa. Essa perspectiva permite ao leitor mergulhar no universo da personagem, absorvendo sua versão dos fatos, mesmo que unilateral.
Graciliano Ramos, autor conhecido por um estilo seco, conciso e direto (como em Vidas Secas e São Bernardo), adota em Angústia um viés intrigante e voltado para si, contrapondo-se à tendência de escrita da época. O foco principal é nos problemas da alma.
A narrativa é marcada pela subjetividade e introspecção. Toda a percepção do enredo é fornecida pela onisciência de Luís da Silva, que absorve o mundo ao seu mundo interior.
A narrativa de Angústia não flui de forma dinâmica como São Bernardo e Vidas Secas. É construída de forma não linear, pautada no fluxo de consciência do narrador.
A obra não possui a divisão em capítulos presente em Caetés e S. Bernardo. Ela se constrói em fragmentos, num ritmo de vaivém entre a realidade presente, a constante evocação do passado e a fuga para o devaneio. Essa fragmentação temporal e a interpenetração de memórias (infância, crime, Marina) acontecem de forma caótica, representando o estado mental conturbado de Luís da Silva.
O fluxo de consciência desvenda a personagem em seu íntimo, aprofundando a crise individual e a solidão extrema. Associado a ele, o monólogo interior permite representar o conteúdo psíquico do personagem antes de ser formulado como fala deliberada.
Angústia é considerado o livro mais complexo e mais experimental de Graciliano Ramos.
Enquanto os outros romances do autor prezam pela economia de recursos e concisão da linguagem, Angústia é visto como um romance excessivo, com uma tumultuosa exuberância.
O próprio Graciliano Ramos confessou em carta que o livro tinha "partes gordurosas e corruptíveis", algo que o irritava, pois ele tinha o hábito de retirar o que não considerasse necessário.
A superabundância de detalhes e a redundância são notórias. Luís da Silva repete termos, expressões e lembranças de forma constante. A repetição desnecessária e o divagar maluco materializam-se na linguagem, dando forma à complexa cadeia de consciência do protagonista. No entanto, a crítica mais recente defende que a superabundância foi a composição justa, alimentada pela imaginação enraivecida do protagonista.
A perspectiva de Luís da Silva, marcada pela disposição mórbida e pelo delírio, leva à deformação expressionista da realidade e das pessoas.
Deformação: A cara de Julião Tavares aparece para Luís da Silva como uma "resistência mole de carne gorda" sobre o original que datilografa. Marina aparece "enroscando-se como uma cobra de cipó".
Símbolos Recorrentes: A violência é metaforizada através de figuras retóricas. O termo "rato" é obsessivo, associado à escrita vendida e à sujeira e exclusão. A corda, utilizada no assassinato, é evocada simbolicamente em devaneios sobre cobras, enforcamentos de assaltantes e suicídios.
A análise de figuras retóricas (metáfora, metonímia/sinédoque) revela um processo de coisificação do ser humano, onde as individualidades são apagadas pelo trabalho que não representa suas subjetividades, equiparando-os a autômatos. O próprio Luís da Silva é visto como um ser autômato, cuja coação compulsiva tenta ser rompida pelo crime.
Os temas de Angústia são profundos e universais, sendo o Existencialismo e o conflito social os mais valorizados em análises críticas e provas.
O próprio título, Angústia, é um substantivo abstrato que nomeia o sentimento que permeia toda a história. A obra traduz, de forma densa, a liberdade de escolha como força motriz da angústia.
A análise crítica estabelece relações diretas entre a obra de Graciliano e o pensamento existencialista, citando filósofos como Jean-Paul Sartre e Soren Kierkegaard.
A Origem da Angústia (Kierkegaard): O sofrimento de Luís remete à angústia tratada por Kierkegaard, associada à liberdade da escolha. A angústia se manifesta quando Luís projeta possibilidades, quando precisa escolher, e quando a condição de agir ou não está em suas mãos. Antes de projetar possibilidades, "viver nas 'sombras' é relativamente fácil".
Responsabilidade (Sartre): O existencialista declara que "o homem é angústia", o que significa que o homem que se engaja e escolhe ser algo, torna-se também um legislador que escolhe o que será a humanidade inteira, sentindo o peso dessa responsabilidade total e profunda. Luís da Silva cultiva a necessidade de agir, misturada ao medo das consequências.
O Quietismo: Luís da Silva, após 35 anos de "quietismo", vê na atitude extrema do crime a possibilidade de livramento. O quietismo é a atitude daqueles que dizem: "Os outros podem fazer aquilo que eu não posso". A doutrina existencialista, ao contrário, afirma: "Só existe realidade na ação"; o homem não é nada mais que seu projeto e o conjunto de seus atos. Ao romper com o quietismo, Luís assume o risco de suportar as consequências de seus atos extremos.
A Luta contra o Determinismo: Luís da Silva tenta quebrar um ciclo determinista de vida. Ele não se submete a um determinismo social, mas reage a ele, fazendo uma escolha e arcando com as consequências.
A obra desenvolve um topos caro ao romance de 1930: a jornada dos descendentes decaídos da aristocracia rural em meio à modernidade periférica.
O Conflito de Tempos Históricos: Luís da Silva vive um conflito de dois tempos históricos distintos: o tempo passado da sociedade rural e patriarcal em decadência (lembranças da fazenda do avô) versus o tempo presente da sociedade industrial, urbana e burguesa. O personagem sente-se deslocado e relegado a um lugar obscuro e anônimo devido à sua frágil condição financeira.
O Sentimento de Exílio: Luís da Silva, imbuído dos valores da oligarquia decadente, é um "homem livre empobrecido" que precisa se adaptar às regras da modernidade canhestra que se instala. Ele não se sente pertencente a nenhuma ordem: nem à aristocracia que o educou, nem ao mundo intelectual (visto como logro e prostituição).
A Literatura como Engano: A esfera da cultura e das letras é vista como mais um instrumento de opressão, comprometida com o poder e a hierarquia. A literatura (jornalismo) é descrita como "tapeação, é safadeza". Luís da Silva vende seus sonetos medíocres por dinheiro, equiparando a arte ao negócio e ao logro.
Antonio Candido sugere que Angústia culmina na materialização do "homem dilacerado", um sujeito fraturado que não possui uma posição definida a priori.
A obra é vista como o desaçaimamento do "bicho do subterrâneo", o substrato animal do homem, o local onde residem os desejos recalcados, as frustrações e o sentimento de impotência.
O protagonista é "por excelência o selvagem, o bicho, escondido na pele dum burguês medíocre". A introspecção e a autoanálise constante do narrador, aliadas à sua consciência de estar à margem, o condicionam a uma angústia intermitente que leva a atitudes extremas.
Este nível consolida o conhecimento com a visão dos principais críticos e aborda dúvidas complexas, essenciais para provas discursivas e aprofundamento.
Antonio Candido foi pioneiro ao tentar encontrar os motivos centrais na obra de Graciliano Ramos.
Ficção e Confissão: Candido cunha a ideia de que a obra de Graciliano elabora um arco que parte da observação do mundo (Ficção) e chega ao escrínio milimétrico do eu (Confissão). Angústia representa o ponto de inflexão em que a ficção se aproxima da confissão.
A Culminação do Eu: Para Candido, a preocupação com a análise do eu culmina em Angústia, onde atinge a materialização do homem dilacerado. O romance é visto como culminação de um processo de pesquisa progressiva da alma humana.
Complexidade Técnica: Candido reconhece que, tecnicamente, Angústia é o livro mais complexo, transcendendo o naturalismo, pois o mundo e as pessoas são uma "realidade fantasmal, colorida pela disposição mórbida do narrador".
Embora a prosa de Graciliano Ramos seja frequentemente associada ao regionalismo da Geração de 30, seus romances (incluindo Angústia) focam em um profundo estudo dos problemas da alma, o que confere à sua produção um caráter de universalidade.
A obra é vista como um reflexo da contradição na sociedade brasileira: o conflito entre uma sociedade semi-colonial em decadência e o desenvolvimento de elementos capitalistas.
O drama do protagonista, Luís da Silva, é a luta contra a alienação, sendo um legítimo representante do conceito de "herói problemático" (segundo Lukács e Carlos Nelson Coutinho), que porta traços de ambiguidade e individualismo, mas que luta contra uma realidade aterradora e alienante.
A diferença de Angústia em relação aos demais romances é crucial para os exames:
Obra de Graciliano Ramos | Característica Principal | Relação com Angústia |
Caetés (1933) | Narrativa em 1ª pessoa, linear, estilo naturalista, busca da economia verbal. | Luís da Silva é uma evolução de João Valério, o protagonista de Caetés. Angústia aprofunda a subjetividade iniciada ali. |
S. Bernardo (1934) | Narrativa em 1ª pessoa, estilo cortante, economia da linguagem, objetividade na narração (Paulo Honório elimina o desnecessário). | Luís da Silva é mais perturbado que Paulo Honório. Angústia maximiza o fluxo de consciência e monólogo interior, que estavam presentes, mas controlados pela objetividade de Paulo Honório. |
Vidas Secas (1938) | Narrativa em 3ª pessoa, linguagem seca, concisa, foco no drama social e geográfico. | É a única das obras centrais não narrada em 1ª pessoa. Embora mais objetivo, o "bicho do subterrâneo" (desejos de revolta) manifesta-se em Fabiano, mas a estrutura social é mais dominante. |
A violência e a ira de Luís da Silva são condicionadas pelo seu incômodo existencial, pelo sentimento de inconformismo e revolta contra todos e contra si mesmo. Ele se sente nitidamente inferiorizado por Julião Tavares.
Alguns críticos, como Massaud Moisés, buscaram na tara hereditária e na educação mal orientada (violência corriqueira na infância) as razões do crime. No entanto, a visão predominante é que o crime é uma forma de escape da dor e frustração do seu presente na cidade, radicalizada pela perda de Marina.
O romance tem uma estrutura cíclica. Ele se inicia com o relato do narrador desperto de seu torpor após o assassinato e tomado por uma forte febre, e se encerra com Luís da Silva delirante, atormentado pela culpa e rodeado por personagens de seu imaginário.
Não fica claro se Luís da Silva enlouquece ou morre. Ele passa a ver o rosto de Julião em tudo o que realiza, transformando seu propósito inicial em seu próprio calvário.
A estrutura romanesca alinha a pesquisa interior do eu (moderna) com a perícia para o crime e a tocaia jagunça (arcaica).
Luís, um homem letrado e decaído, busca a solução para sua humilhação não na lei burguesa (a qual ele vê como corruptível), mas na vingança à maneira sertaneja. Ele deseja assassinar o rival para recuperar a honra e compensar as perdas sofridas. O crime, portanto, é um salto do jagunço contra o mundo que se moderniza, mas é refratado pela consciência moderna, tornando-se duplamente dilacerador. A introspecção, nesse sentido, se torna uma "tocaia de si".
Luís da Silva não tem uma consciência de classe bem definida. Ele oscila entre a arrogância senhorial (rejeitando mendigos e pobres) e a identificação dolorosa com os miseráveis. Sua desventura é o resultado da incapacidade de se entender como parte de um todo social.
No entanto, a narrativa, através de sua arquitetura complexa, insere elementos de consciência crítica. Por exemplo, ao observar o arrabalde, a frase "Proletários, uni-vos" surge pichada, contrastando com o seu drama pessoal de vingança e solidariedade, e sugerindo a "rota esmaecida da revolução" que ele, como um marginalizado, não pode abraçar totalmente.