A peça O Auto da Compadecida, publicada em 1955, é considerada um marco no cinema brasileiro e uma referência incontestável da literatura nacional. A obra de Ariano Suassuna (1927-2014) mescla de forma brilhante humor, crítica social e aspectos da cultura nordestina, utilizando a linguagem do povo para denunciar desigualdades e hipocrisias.
Neste nível, abordamos os elementos mais básicos e as perguntas óbvias sobre a obra.
Ariano Vilar Suassuna nasceu em 1927, na Paraíba, e foi filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna, que foi governador da Paraíba. Após o assassinato de seu pai em 1930, Ariano se mudou para Taeporá e, depois, para Recife, onde completou seus estudos e ingressou no curso de Direito. Ele fundou, junto com Hermilo, o Teatro do Estudante em Pernambuco (TEP).
Sua vasta obra, incluindo O Auto da Compadecida, está intrinsecamente ligada à tradição popular nordestina.
O Movimento Armorial, fundado por Ariano Suassuna em Recife, buscava lutar contra a vulgarização e a descaracterização da cultura brasileira. A obra O Auto da Compadecida era considerada uma bandeira do Movimento Armorial, que defendia a criação erudita a partir das fontes populares do Nordeste.
O Auto da Compadecida é um exemplo de arte armorial, misturando o profano e o religioso, usando narrativas do romanceiro popular nordestino e se inspirando em espetáculos como o Bumba-meu-boi e o Mamulengo.
O Auto da Compadecida é classificada como gênero dramático e, mais especificamente, uma tragicomédia, pois mistura elementos humorísticos e trágicos (mortes) que levam a um final feliz.
O texto original (peça teatral) é dividido em três atos:
Ato 1: Gira em torno do velório de um cachorro.
Ato 2: Apresenta a chegada dos cangaceiros e as histórias sobre o gato que descome dinheiro e o instrumento musical capaz de reviver mortos (o episódio do gato foi suprimido na adaptação de Guel Arraes).
Ato 3: O Julgamento Final dos personagens mortos.
A peça foi publicada em 1955 e encenada pela primeira vez em 1956.
A fábula da peça gira em torno da luta pela sobrevivência de João Grilo e Chicó. Através de artimanhas e esperteza, a dupla de pobres nordestinos busca se virar em um sistema desigual e injusto.
A narrativa é marcada por peripécias, que são mudanças dos acontecimentos para o seu reverso, seguindo o princípio da verossimilhança e da necessidade, conforme a Poética de Aristóteles.
João Grilo e Chicó são o estereótipo da malandragem brasileira, mas também representam o próprio brasileiro. A dupla é uma das mais emblemáticas da cultura brasileira.
João Grilo: É o protagonista, caracterizado como o amarelinho ou quengo, o sagaz e esperto, responsável pela criação de todas as situações da peça. Ele é um anti-herói humilde e espirituoso que usa a argúcia e a malandragem para sobreviver. Ele incorpora a dualidade do ser humano (bem e mal, certo e errado).
Chicó: É o amigo e companheiro de aventuras, frequentemente o mais tímido e medroso. Ele é conhecido por suas histórias fantasiosas e encantadas, atuando como um duplo de João Grilo.
Este nível explora os mecanismos estilísticos e temáticos que tornam a obra rica para a análise literária.
Suassuna utiliza a sátira e a ironia para denunciar as mazelas sociais. A crítica social é aguda e se manifesta de forma desencantada, expondo a hipocrisia de diversas classes e tipos sociais.
O principal alvo da crítica no Auto da Compadecida é o clero, que se mostra corrompido pelo mundanismo. O Padre, o Bispo e o Sacristão são movidos pela avareza e pela subserviência ao poder político e econômico, como o Major Antônio Moraes.
A obra critica a hierarquia e a corrupção clerical, mas, ao mesmo tempo, resgata a fé popular como uma força redentora.
A dramaturgia de Suassuna é profundamente marcada pela cultura popular nordestina, que por sua vez é herdeira da tradição medieval ibérica.
Cordel e Oralidade: A peça tem suas peripécias inspiradas em cordéis específicos. A história do enterro do cachorro e do cavalo que defecava dinheiro (transformado em gato) se relaciona a obras de Leandro Gomes de Barros e Anselmo Vieira de Souza. O autor se utilizou do método de motes, comum entre cantadores, para compor sua obra.
Intertextualidade: A intertextualidade é uma marca capital na obra de Suassuna, onde ele reelabora textos alheios e os dramatiza. Isso reflete uma prática comum na Idade Média, onde a literatura não se preocupava com a autoria, mas sim com a versão e o tratamento conferido pelo novo intérprete.
A obra emprega a linguagem nordestina, marcada por regionalismos e um dialeto mais rebuscado, contribuindo para o efeito de verossimilhança.
O estilo do autor reflete o conceito de pluridiscursividade de Mikhail Bakhtin, que descreve a linguagem em sua existência histórica como a coexistência de contradições socioideológicas e "falares" socialmente típicos. A linguagem coloquial e os regionalismos reforçam a comicidade intrínseca da obra.
Neste nível, aprofundamos nos conceitos críticos e nas matrizes complexas que frequentemente caem em exames de alto nível.
A cultura ibérica (portuguesa e espanhola), baseada na cultura popular do cariri paraibano, é rica em referências a valores da Idade Média trazidos pelo colonizador. A colonização portuguesa no Brasil foi iniciada por pessoas que traziam uma mentalidade profundamente medieval.
Cronologia Estilhaçada: Lígia Vassalo argumenta que, embora a Europa entrasse na Renascença/Modernidade, a Modernidade não ocorreu ao mesmo tempo em todos os lugares, e elementos medievais persistiram na cultura popular nordestina.
Divisão Binária Medieval: A cultura medieval era marcada pela divisão entre a grande (erudita) e a pequena (popular) tradição. Suassuna, através do Movimento Armorial, busca unir essas vertentes.
Estruturas Medievais: O autor adota estruturas formais das representações medievais, como o mistério, o milagre e a moralidade, e assume denominações anteriores ao Renascimento, como auto e farsa.
A literatura picaresca espanhola (surgida no século XVI) é um gênero influente na obra de Suassuna. O objetivo de estudos comparados é analisar a influência desse gênero, especialmente na caracterização de João Grilo.
João Grilo é um tipo marcante da dramaturgia de Ariano. Ele se assemelha ao pícaro espanhol do século XVI (personagem anti-heroica) que, com sua esperteza e malandragem, sobrevive em meio a uma sociedade desigual e injusta.
As semelhanças incluem:
Ambos são personagens marginalizadas que usam a astúcia para sobreviver a uma realidade hostil.
Ambos transitam entre os vários setores da sociedade e revelam a aguda crítica social a diferentes estamentos (clero, burguesia, aristocracia).
A figura do pícaro surge em oposição à novela de cavalaria, atuando como uma sátira.
As diferenças e a complexidade de João Grilo (foco de análise avançada):
Gênero: O pícaro original pertence ao romance (narrativa autobiográfica), enquanto João Grilo está no teatro (foco narrativo fragmentário).
Solidão vs. Dupla: O pícaro é, muitas vezes, solitário, mas João Grilo tem um duplo, Chicó, que lhe oferece uma caracterização anteposta.
Amálgama de Tipos: Em João Grilo, Suassuna amalgama duas visões conflitantes do pícaro tradicional:
O inocente corrompido (como Lázaro do Lazarillo de Tormes).
O natural vicioso/malandro de berço (como Don Pablos d' El Buscón).
Essa amalgamação de características viciosas e de inocência é resolvida pela passagem da esfera humana para a divina na peça, onde a misericórdia da Compadecida justifica os atos humanos.
A obra tem seu ponto alto na carnavalização, ou a criação de um mundo às avessas, conceito fundamentado na teoria de Mikhail Bakhtin.
O que é Carnavalização? A carnavalização é a influência do carnaval em contextos culturais pela inversão dos códigos vigentes. Não deve ser entendida apenas como festa popular, mas como um momento de catarse, riso e caricatura, onde o pobre pode rir da autoridade e satirizar as mazelas sociais.
Manifestações na Obra (Inversões e Choques):
Inversão Hierárquica: O princípio carnavalesco abole as hierarquias e nivela as classes sociais. O julgamento final é o ápice, onde João Grilo, o analfabeto, sagaz e amarelo, torna-se o salvador de todos perante o tribunal celeste (Jesus, Nossa Senhora e o Diabo).
Choque de Dualidades: Ocorre o choque entre o oficial e o não oficial, o sagrado e o profano, o erudito e o popular.
Profanação e Ridículo: O Palhaço (no teatro) e João Grilo (no filme) usam o ridículo e a zombaria para abordar o sagrado, transformando o sério em cômico.
O Grotesco e a Abundância: A obra prolonga a linha grotesca, marcante na Idade Média, onde todas as deformações são adequadas, rompendo a barreira entre as marcações rígidas.
A obra aborda o juízo final e os aspectos religiosos, explorando o sagrado de forma irônica e reflexiva.
Dessacralização (Conceito Chave): A dessacralização é um aspecto capital na construção da peça. Ela é entendida como a inserção do sagrado no profano, e vice-versa, e a intimidade do natural/profano sobre a hierofania (manifestação do sagrado).
No Teatro (Peça Original): A dessacralização é primariamente realizada pela figura do Palhaço, que, como narrador/cantador, tem a liberdade de abordar temas sagrados de forma natural e profana. O Palhaço simboliza a inversão da compostura régia e a paródia encarnada.
No Julgamento: João Grilo relaciona-se com as figuras sacras sem cerimônia, como ao comentar que pensava que Jesus (Manuel) era "muito menos queimado" (negro). Ele busca a misericórdia em quem conhece suas dores humanas, aproximando a Compadecida (Nossa Senhora) do universo humano.
O Papel da Compadecida: A figura da Compadecida (Nossa Senhora) atua como a ponte entre o humano e o divino, trazendo a dimensão espiritual à trama. Ela representa a misericórdia, contrastando com a dureza da vida no sertão e a justiça estrita de Manuel (Jesus).
Justificação do Pecado: No julgamento, as atitudes dúbias de João Grilo (e de outros) são justificadas pela situação de isolamento e pela sociedade injusta que os obriga a usar a malandragem para sobreviver. A passagem do profano para o sagrado garante a absolvição dos homens.
Embora publicada em 1955, a obra retrata a cidade de Taperoá sob os resquícios do Coronelismo, um sistema político que prevaleceu durante a República Velha (1889-1930).
O Major Antônio Morais: É a figura do coronel na obra, representando o poder político e econômico. Era um homem abastado, temido até pelo padre da cidade. A subserviência da Igreja ao poder local (o Major) demonstra a influência da oligarquia regional.
Estereótipo de Atraso: A figura do coronel e a estrutura social retratada ajudam a justificar o estereótipo de subdesenvolvimento e atraso da região Nordeste.
Crítica Pessoal: A crítica de Suassuna ao Coronelismo é intensificada por sua própria história: seu pai foi assassinado em 1930 devido a conflitos políticos com diversos latifundiários e coronéis sertanejos.
A obra de Suassuna é rica em intertextualidade. No campo da teoria literária, a relação entre O Auto da Compadecida e suas fontes (Cordel, Picaresca, Autos Medievais) pode ser analisada pelo conceito de Hipertextualidade de Gérard Genette.
Hipertexto e Hipotexto: O Auto da Compadecida é o hipertexto (texto B) que deriva de um texto anterior, o hipotexto (texto A), como os folhetos de cordel.
Transformação e Imitação: Genette distingue dois processos: Transformação (transposição de conteúdo para outro contexto/forma) e Imitação (cópia de um modelo formal/estilístico para constituir um gênero). No Auto da Compadecida, a influência da picaresca se dá por transformações hipertextuais, transpondo traços do pícaro para a figura de João Grilo, em um gênero distinto (teatro).
Mímesis e Emulação: A atividade do autor não é uma cópia servil, mas uma mímesis criativa. O conceito de emulação (aemulatio) implica o desejo de rivalizar e superar o modelo original, o que Suassuna faz ao reelaborar o material popular em uma peça teatral erudita.
O Heterologos é um conceito filosófico que explica o modo de pensar em língua portuguesa, que não se encontra na filosofia, mas sim na poesia e nas artes.
Natureza do Pensamento Luso-Brasileiro: O pensamento em português é aconceptual e assistemático, ligado à metáfora poética e ao mito.
Brasil como Destino: O Brasil, com sua desmesura e exuberância, encarna a realização dos mitos portugueses. O sertão é o espaço onde o componente marítimo do heterologos (a travessia, o mar) cede lugar ao significado da terra (telúrico), tornando-se um mundo sacralizado onde, apesar da ausência de pecado original, o mal está presente.
Em concursos, é comum a comparação entre a obra original (teatro) e as adaptações, especialmente a de Guel Arraes.
Versão | Ano | Diretor | Narrador Explícito (Palhaço) | Foco Estilístico |
A Compadecida | 1967 | George Jonas | Presente (Dom Pancrácio) | Antiilusionista, influenciado por Bazin (longos planos). |
Os Trapalhões no Auto da Compadecida | 1987 | Roberto Farias | Presente (irônico/gozador) | Cinema clássico com forte influência televisiva e de comédia burlesca (pastelão). |
O Auto da Compadecida | 2000/2001 | Guel Arraes | Suprimido/Ausente | Ritmo acelerado (influência da minissérie/TV), foco em João Grilo/Chicó. |
Esta adaptação é baseada na minissérie de 1999.
Ausência do Palhaço: Guel Arraes suprimiu o Palhaço. O papel de narrador explícito e, principalmente, de agente da dessacralização, foi incorporado por João Grilo.
Narrativa e Ponto de Vista: Ao dispensar o narrador explícito, o filme adota um olhar sem corpo do cinema clássico. A narrativa foca nas aventuras de João Grilo e Chicó.
Alterações no Conteúdo: Guel Arraes deixou de fora o episódio do "gato que descome dinheiro" e suprimiu personagens como o Sacristão e o Demônio na lista de suprimidos, embora o Diabo apareça no julgamento [210 nota 7].
Inclusões (Expansão Narrativa): Para adaptar a peça para a minissérie (e depois para o filme), foram adicionadas novas personagens e situações, como:
Cabo 70 e Vicentão (oriundos da peça Torturas de um Coração).
A personagem Rosinha (filha do Major Antônio Morais, que substitui o "filho" da peça) e o romance com Chicó.
Ponto de Vista Predicativo (A Mensagem do Autor): Ao contrário das versões anteriores que focavam apenas no farsesco e moralista, Guel Arraes insere uma visão crítica social mais explícita. Na cena do julgamento, são inseridas fotos em preto e branco que denunciam a miséria e o abandono dos sertanejos, atualizando o texto de Suassuna e conectando-o à triste realidade nordestina.
Q: Qual a principal diferença entre João Grilo e o pícaro espanhol tradicional? R: A principal diferença é que João Grilo não é absolutamente abandonado, ele tem um duplo, Chicó, e suas ações viciosas e de logro são, no final, redimidas pela misericórdia da Compadecida, o que lhe confere uma redenção que o afasta do destino puramente satírico de alguns pícaros espanhóis, como o Don Pablos de Quevedo.
Q: Qual o papel do Palhaço na peça e no filme? R: Na peça de teatro original, o Palhaço é o narrador explícito, atuando como representante do autor e do Cantador de versos. Ele é o principal agente da dessacralização e da ironia. No filme de Guel Arraes, a figura do Palhaço é suprimida, e sua função de dessacralizar é transferida para a personagem de João Grilo.
Q: Como a Compadecida subverte a justiça divina no julgamento? R: A Compadecida (Nossa Senhora) subverte a justiça estrita de Manuel (Jesus) ao interceder pelos condenados, especialmente João Grilo. Ela justifica as ações humanas pela fragilidade da condição humana, marcada pelo medo, isolamento e a opressão de uma sociedade injusta. Ela prioriza a compaixão sobre a punição.
Q: Por que o Juízo Final é o ponto alto para a carnavalização? R: O julgamento é o auge da carnavalização porque realiza a inversão do código vigente. O palco celestial é transformado em um picadeiro de circo, e a hierarquia é invertida: o pobre marginalizado (João Grilo) obtém poder sobre os canalhas ricos (Padre, Bispo, Padeiro) e até mesmo sobre o Diabo. A cena mostra a síntese da face humana sob a dualidade do sério e do cômico.