Para entender a profundidade de O Primo Basílio, é fundamental situar a obra dentro do contexto de seu autor e da escola literária que ele abraçava.
Eça de Queirós é reconhecido como um dos escritores que melhor conseguiu realizar o retrato fiel da sociedade na qual estava inserido: o Portugal da segunda metade do século XIX. Grande parte de sua obra, incluindo O Primo Basílio, representou a decadência de sua pátria e os vícios sociais mais predominantes.
A crítica de Eça à sociedade portuguesa manifestou-se inicialmente em As Farpas, uma crônica mensal (1871) que pretendia "ferroar" a sociedade de forma irônica e satírica, criticando a ignorância, a política, o adultério, a decadência econômica e a religião. Eça pretendia chocar a "sonolenta opinião pública lisboeta".
Posteriormente, Eça amadureceu essa crítica em um projeto maior, intitulado "Cenas da vida Portuguesa" (inicialmente "Cenas da Vida Real"), inspirado na Comédia Humana de Honoré de Balzac. O Primo Basílio (1878) é um dos grandes representantes desse projeto. O objetivo primordial de Eça era pintar os quadros do mundo burguês em plena ruína, utilizando a sátira e a crítica ácida.
O Primo Basílio (1878) é uma obra escrita na fase realista-naturalista de Eça de Queirós. Essa escola literária, que Eça defendia como "a grande evolução literária do século", buscava:
Fazer o quadro do mundo moderno em suas feições negativas.
Utilizar o método da observação e da denúncia das mazelas sociais.
Criticar fortemente o Romantismo (o excesso de sentimentalismo e fantasia).
Fazer uma fotografia, ou quase uma caricatura, do velho mundo burguês.
Eça via o Realismo como uma "ciência revolucionária", capaz de atacar a sociedade burguesa sentimental e devota para preparar sua ruína.
O Primo Basílio: Episódio Doméstico está ambientado em Lisboa, focando no cotidiano de um lar burguês lisboeta.
O romance inicia com a rotina pacata, ociosa e entediada de Luísa, casada há três anos com o engenheiro Jorge. Luísa é uma leitora assídua de romances sentimentais. A trama se desencadeia quando Jorge viaja a trabalho para o Alentejo.
Durante a ausência de Jorge, Basílio, primo de Luísa e seu antigo namorado da juventude, retorna a Lisboa vindo de Paris/Brasil. Basílio, um bon vivant e sedutor, facilmente atrai Luísa, que, carente e influenciada por fantasias românticas, cai em adultério.
A criada Juliana, que nutria um profundo rancor e inveja da patroa, descobre a relação e intercepta as cartas de Luísa e Basílio, passando a chantagear Luísa. A vida de Luísa torna-se um martírio sob o domínio de Juliana.
Quando Jorge retorna, a situação se complica. Luísa adoece, definhando. Sebastião, amigo de Jorge, intervém, recupera as cartas, e aterrorizada, Juliana sofre um aneurisma e morre. Luísa fica momentaneamente aliviada. No entanto, Basílio, de longe, envia uma carta prometendo dinheiro, carta esta que cai nas mãos de Jorge, revelando o adultério.
Desmascarada, Luísa adoece fatalmente e morre. Basílio, ao retornar a Lisboa, é informado do falecimento com total indiferença e segue sua vida de conquistador.
O final da obra é um elemento crucial para a crítica social que Eça pretendia impor e é altamente cobrado em concursos.
O tradicional final feliz dos romances é negado. A esposa adúltera, Luísa, é punida com a morte. Já o sedutor, Basílio, o "canalha", fica imune a qualquer punição.
Ao ser informado da morte de Luísa, Basílio reage com total desdém: "Que ferro! Podia ter trazido a Alphonsine!". Eça mostra ironicamente que a sociedade "premia" espécies como Basílio e Amaro, que distorcem a realidade. O autor demonstra a grande desigualdade: enquanto Luísa sofre e morre, ele "partia alegre, levando as recordações romanescas da aventura".
A protagonista Luísa, casada com Jorge, é a representação da mulher burguesa lisboeta. Eça a descreveu como sentimental, mal-educada, sem disciplina moral, arrasada por leituras de romances e sobreexcitada no temperamento pela ociosidade.
Luísa é descrita fisicamente como bonita, jovem, e delicada. Seus cabelos louros simbolizam sua beleza, vitalidade sensual e sensibilidade romântica. Ela é apresentada com uma preguiça que reflete a ociosidade da sua vida.
Ela é uma personagem que oscila entre o tipo plano e o redondo. Aos olhos de Jorge, ela é a mulher ideal, dócil, frágil e boa dona de casa. Mas no seu mundo interior, ela é marcada por contradições e uma profunda vacuidade interior.
O Bovarismo (Tema Central em Análises): Luísa incorpora o fenômeno que remete a Madame Bovary de Flaubert. Ela é leitora de romances sentimentais e tenta viver uma vida mais "poética". A leitura de romances torna-se uma fuga emocional à sua vida estreita e monótona. Ela busca uma vida luxuosa, interessante e elegante, como as heroínas que lia.
O casamento de Luísa e Jorge, embora considerado "perfeito" pelos amigos, é insípido e falha por diversas razões.
O Tédio: O casamento é monótono e ocioso.
Dependência: Luísa sente uma completa dependência de Jorge. Ele é o "seu tudo, — a sua força, o seu fim, o seu destino, a sua religião, o seu homem!". Quando ele viaja, ela sente-se sem guia e em um estado de "liberdade".
Caráter Infantilizado: Jorge trata Luísa como uma criança, pois a considera ingênua e com falta de discernimento.
Diferenças de Gosto: Jorge tem um espírito prático (leitor de ciência), enquanto Luísa tem um espírito romântico (leitora de ficção), o que gera um afastamento psicológico.
O adultério de Luísa, para Machado de Assis, não era explicado por "paixão, sublime ou subalterna". Eça de Queirós, por sua vez, atribui a queda de Luísa a falhas de caráter e influências sociais:
Vaidade e Ascensão Social: Basílio, rico e viajado, atrai Luísa porque satisfaz o seu sonho burguês de ascensão social. Ela sente-se orgulhosa de ter um amante, acreditando estar cumprindo o "dever aristocrático" do adultério.
Vacuidade Interior (Busca por Ocupação): A relação adúltera tornou-se um antídoto para a vacuidade e o tédio da sua vida conjugal. O que a atrai é a sensação de perigo e excitação (o "aparato"), não o sentimento em si.
Fragilidade de Caráter: Luísa é inconsistente, passiva e amoldável. Ela confunde desejo físico, novidade e capricho sensual com amor-paixão. O seu caráter defeituoso é visto como resultado da má educação e das convenções sociais da sociedade patriarcal.
Exceção/Perguntas sobre a Paixão: O que Luísa pensava sentir era, na realidade, uma ilusão do amor-paixão. A paixão que ela buscava era efêmera: ela percebe que "o amor é essencialmente perecível, e na hora em que nasce começa a morrer". Basílio, por sua vez, não a amava, mas a quis por vaidade, capricho e distração.
O estilo discursivo de Eça de Queirós é profundamente baseado no uso da ironia. Em O Primo Basílio e outras "Cenas", a ironia se torna mais sutil e voltada para os conflitos e defeitos das personagens.
A ironia é utilizada como recurso para tratar com sarcasmo e sátira a decadência de Portugal e os vícios sociais. Eça utilizava a sátira para criticar o mundo burguês.
O autor utiliza a ironia para:
Criticar a Má Educação Romântica: Luísa, educada nesses moldes, é induzida a um amor proibido.
Denunciar o Casamento Burguês: O matrimônio é retratado como uma instituição volúvel e contraditória, onde o tédio rapidamente se abate sobre o casal.
Expor a Hipocrisia: O famoso Conselheiro Acácio, que representa o formalismo afetado, mantém uma relação secreta com a criada Leopoldina, demonstrando a falsidade da sociedade.
O romance é uma síntese do Realismo-Naturalismo e trabalha a questão do determinismo. Eça expõe o quanto o meio, os hábitos e o tipo de educação recebida influenciaram a formação da personalidade de Luísa. O ambiente decadente e apático exerce poder sobre as personagens, tornando-as indolentes e justificando o adultério.
Luísa é a "burguesinha da Baixa", e sua origem está ligada à sua fragilidade. Eça utiliza essa perspectiva determinista para atacar os problemas sociais de sua época. A sua crítica, no entanto, é feita com a esperança de que a denúncia possa transformar o meio social.
Além da ironia satírica e sarcástica, Eça emprega a ironia socrática, que visa levar o leitor a tomar consciência da própria ignorância, obrigando-o à pesquisa. Eça buscava ser a consciência dos portugueses. Ele convida o leitor (de "bom-senso") a participar ativamente da crítica, mas sugere que a compreensão profunda da obra é destinada a "poucos".
A relação dialética entre a patroa (Luísa) e a empregada (Juliana) é o motor da segunda metade da trama e um dos pontos mais complexos e aprofundados do romance.
Basílio é o anti-herói do romance, um conquistador e bon vivant.
Caráter: É cínico, egoísta e infame. Ele busca a "vaidadezinha de uma aventura e o amor grátis".
Retórica Irônica: Basílio utiliza uma retórica sedutora e enganosa para conquistar Luísa, manipulando-a. Sua suposta bagagem estrangeira e conversas sobre Paris (o sonho de Luísa) são sua arma.
Imunidade Social: Ele é premiado pela sociedade. Após o adultério, ele segue sua vida de conquistador, sem remorsos. A sociedade trata o adultério masculino com tolerância.
Juliana é considerada o "caráter mais completo e verdadeiro do livro" por Machado de Assis. Ela é a representação sintética da classe trabalhadora da época. Sua frustração e rancor a levam a canalizar seu ódio em Luísa.
Aparência e Espaço: Juliana é descrita com traços físicos negativos, sugerindo o grotesco. É magra, com olhos "raiados de sangue". Luísa a associa à "imagem da morte". Seu aposento (no sótão, abafado, estreito, com cheiro de tijolo) é um 'loci horribiles' (espaço opressivo), típico de narrativas góticas.
O Gótico (Exceção/Aprofundamento): A composição de Juliana incorpora topoi (clichês literários) relacionados ao gótico.
Monstruosidade: Sua vilania é auxiliada por essa dimensão gótica. Suas mãos são comparadas a garras em sua morte.
Duplo: Juliana evoca o tópos do duplo. O duplo aqui é uma oposição complementar a Luísa: ela inveja e deseja a beleza, a vaidade e o status de Luísa. Ela tenta simbolicamente assumir a vida de Luísa ao marcar suas iniciais nas roupas da patroa.
Perseguição e Vampirismo: A chantagem é um tipo de perseguição verbal que encurrala Luísa. Juliana, ao sentir-se inchada de alegria, drena a vitalidade de Luísa, que definha, remetendo sutilmente ao tópos do vampírico.
Luísa morre por ter manchado o casamento com o adultério. Seu destino trágico reflete a situação de isolamento existencial e espiritual das mulheres de sua época.
A lei portuguesa do século XIX, reflexo da sociedade patriarcal, tratava o adultério de forma desigual. O adultério feminino era duramente condenado, legitimando até a separação ou, em casos extremos, o crime passional (o homem que matasse a mulher adúltera ou o adúltero teria atenuantes). A lei, na prática, colocava a mulher em uma posição subordinada e isolada, como um "canário preso na gaiola de casamento".
O corte de cabelo de Luísa, feito pelos médicos antes de sua morte, é interpretado como uma forma de punição social, uma "mórbida purificação dos pecados" que a atinge em sua beleza (o móvel do crime).
A crítica mais notável e duradoura a O Primo Basílio foi feita por Machado de Assis em um artigo publicado em O Cruzeiro em 1878. Essa crítica é crucial para entender a recepção da obra e as intenções estéticas dos autores.
Machado de Assis, embora reconhecesse o "estilo vigoroso e brilhante" de Eça, atacou severamente o romance.
Acusações de Plágio e Falha Estética: Ele acusou Eça de ser um discípulo de Zola e de ter plagiado La faute de l’Abbé Mouret (em O Crime do Padre Amaro). Em O Primo Basílio, Eça teria reincidido em fórmulas, resultando em um tom rebuscado e clichê.
Crítica à Luísa (O "Títere"): Machado não encontrou motivação suficiente para o adultério de Luísa. Ele a descreveu como um "caráter negativo" e um "títere" (fantoche). Para ele, Luísa "resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem consciência", sendo apenas "matéria inerte".
Ênfase no Físico/Sensual: Machado ironizou a descrição de Luísa experimentando uma "sensação nova", criticando o "realismo sem condescendência" que explicitava o escuso e o torpe "com uma exação de inventário".
Estudos críticos posteriores indicam que Machado pode ter se "equivocado" ao classificar a obra apenas como mais um "romance de tese". Machado teria deixado escapar a sutileza da composição queirosiana.
O Primo Basílio é visto, na verdade, como um "metarromance", menos um romance de tese do que uma tese sobre o novo romance. Eça encenava o "surpreendente desnudamento da ficcionalidade".
Eça, através da peça de teatro Honra e Paixão (escrita por Ernestinho dentro do romance), cria um cenário desdobrável (uma mîse-en-abyme) que reflete e comenta a realidade da própria obra. Esse "livre trânsito carnavalesco", que mistura gêneros e amplia vozes, foi um novo paradigma estético que Eça estava implementando.
Embora Machado de Assis não tenha vislumbrado essa complexidade estética, sua crítica serviu, paradoxalmente, como guia para Eça reformular parte de sua obra, como ocorreu na rescrita da terceira edição de O Crime do Padre Amaro.
P: Qual é a crítica central de Eça de Queirós em O Primo Basílio? R: A obra é uma crítica social poderosa à burguesia lisboeta do século XIX. Eça critica a hipocrisia social, a falsidade nos relacionamentos, a falência da instituição do casamento, e a ociosidade das mulheres de classe média, que, por falta de disciplina moral, caem na sedução e na fantasia romântica.
P: Por que Luísa comete adultério? R: O adultério é motivado pela vacuidade interior e tédio da vida conjugal, pela influência da literatura romântica (Bovarismo) que a impede de distinguir amor de desejo, e pela vaidade de buscar uma aventura "aristocrática" e chique. Basílio, o sedutor, apenas se aproveita de sua fragilidade e inexperiência.
P: Por que Luísa morre no final do romance? R: Luísa morre como castigo moral pelo adultério. Sua morte, embora causada por doença/febre, é o destino trágico reservado pela sociedade à mulher que transgride a honra matrimonial. O romance denuncia a dupla moral da sociedade, que condena a mulher (Luísa) com a morte, mas permite que o homem (Basílio) siga impune.
P: Quem é Juliana e qual seu papel? R: Juliana é a criada que descobre o adultério e chantageia Luísa. Ela é uma figura crucial que representa o conflito de classes e a vingança pelos anos de servidão. Ela é descrita com traços grotescos e sombrios, incorporando elementos da literatura gótica e atuando como uma espécie de duplo oposto de Luísa.
P: Qual foi a crítica de Machado de Assis a O Primo Basílio? R: Machado de Assis criticou a protagonista Luísa, chamando-a de "títere" (fantoche) e "caráter negativo". Ele argumentou que o adultério não era motivado por paixão, mas apenas por falta de caráter. Machado também criticou o excesso de realismo, que beirava o vulgar, ao descrever o incidente erótico.
O Primo Basílio se mantém como uma obra fundamental por seu olhar aguçado e crítico sobre a sociedade. Eça utilizou a ironia como uma "estratégia ideológica" para denunciar os aspectos sociais.
A obra, apesar de focada em Portugal, ressoou fortemente no Brasil, onde gerou uma intensa polêmica literária e moral em 1878, com críticos como Machado de Assis se engajando no debate sobre a moralidade feminina e a estética realista. A análise da obra hoje serve para entender as estruturas patriarcais e as noções de feminilidade e domesticidade no século XIX.
O romance, ao desvelar a nudez da verdade sob o "manto diáfano da fantasia", concretizou o projeto de Eça de reformar a sociedade e a literatura.