O Trovadorismo, na Península Ibérica, foi um movimento literário e poético medieval cujo apogeu se estendeu por cerca de 150 anos, abrangendo genericamente o período de finais do século XII a meados do século XIV.
Período e Duração: Embora haja certa discussão sobre a data exata, o período é geralmente compreendido entre 1189 e 1418, ou, mais especificamente, dos primórdios do século XIII até meados do século XIV. A data mais antiga de manifestação literária galaico-portuguesa datável é a cantiga "Ora faz host'o senhor de Navarra", de João Soares de Paiva, composta por volta de 1200. Contudo, o marco inicial tradicionalmente citado é a Cantiga da Ribeirinha (ou Cantiga de Guarvaia), de Paio Soares de Taveirós. O termo do período é frequentemente associado ao ano de 1350, data do testamento do Conde D. Pedro Afonso de Barcelos.
A Lingua Mãe (Galego-Português): Os primeiros registros da literatura portuguesa foram escritos em Galego-Português, que era a coiné (língua comum) da poesia lírica e satírica na Península Ibérica nesse período. O Galego-Português era a língua falada na faixa ocidental da Península até meados do século XIV.
Influências (Ponto Fundamental): A poesia trovadoresca galego-portuguesa possui duas origens principais que se misturaram:
Tradição Cortês (Provençal): De origem em Provença (Sul da França), essencialmente aristocrática, profana e cortês. Esta tradição introduziu o estilo mais técnico e a valorização do sofrimento amoroso.
Tradição Popular (Ibérica): Vinda da tradição oral própria da Península Ibérica. Essa influência popular contribuiu para que o galego, próprio dos jograis, se tornasse a língua literária da poesia trovadoresca.
A poesia trovadoresca era fundamentalmente cantada e acompanhada de instrumentos (viola, harpa, cítara e lira). A circulação das cantigas dependia da memória e do ouvido dos autores e dos executantes.
Agente | Definição e Função | Origem Social |
Trovador | Compunha a letra e a melodia. | Nobreza ou Clero. |
Jogral | Memorizava, recitava/cantava as cantigas; tocava instrumentos. Podia compor, sendo, nesse caso, de origem vilã. | Origem popular (vilã). |
Menestrel | Também memorizava as cantigas e tocava instrumentos musicais. | Condição social inferior aos trovadores. |
Soldadeira | Moças que dançavam e tocavam instrumentos (castanhola ou pandeiro), interpretando sentimentos. |
A poesia trovadoresca está dividida em dois grandes grupos temáticos: as de caráter lírico-amoroso e as de caráter satírico.
A distinção entre os gêneros profanos é registrada no pequeno tratado anônimo Arte de Trovar, incluído no Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Os principais gêneros são: Cantiga de Amor, Cantiga de Amigo e Cantiga de Escárnio e Maldizer.
As cantigas foram preservadas em coleções manuscritas conhecidas como cancioneiros.
Cancioneiro da Ajuda (A): É a coleção de poemas trovadorescos mais antiga. Datado do final do século XIII ou início do XIV. Contém 310 cantigas, predominantemente de Cantiga de Amor. É um manuscrito incompleto.
Cancioneiro da Vaticana (V): Datado do século XIV, é uma cópia quinhentista feita por Angelo Colocci. Reúne 1.200 composições, incluindo cantigas de amor, de amigo, de escárnio e de maldizer.
Cancioneiro da Biblioteca Nacional (B) (Colocci-Brancuti): Datado do século XIV, também copiado por Angelo Colocci, é o mais completo, reunindo 1560 cantigas. Este contém a Arte de Trovar.
Cantigas de Santa Maria: Coleção religiosa de mais de 420 composições, atribuída a Afonso X, o Sábio.
Pergaminhos Musicados (EXCEÇÃO): O Pergaminho Vindel e o Pergaminho Sharrer são folhas importantes por incluírem notação musical.
As cantigas lírico-amorosas exploram os sentimentos e emoções, sendo geralmente escritas em primeira pessoa (eu).
A Cantiga de Amor é um gênero de registro aristocrático que segue claramente o universo do fin'amor provençal.
Eu-Lírico: Masculino (o trovador).
Tema Central: O sofrimento amoroso (coita) e o lamento pela indiferença da amada. O amor é visto como impossível de ser concretizado.
A Amada (Idealização): A mulher é reverenciada, idealizada, inatigível e descrita como superior, pura e divina. É, frequentemente, uma dama da corte, muitas vezes casada, o que intensifica o caráter adúltero e impossível do amor.
A Vassalagem Amorosa (EXAME TÓPICO PRIORITÁRIO): Essa é a característica ideológica mais importante. O eu-lírico se coloca em uma posição de submissão e servidão (servidor) diante da amada, chamada de "mia senhor" (minha senhora). Essa relação hierárquica imita o sistema feudal de vassalagem entre o vassalo e o senhor feudal.
Cenário: Palaciano e aristocrático.
Estrutura Formal: Mais elaborada e com preocupações rítmicas e métricas.
O que é Coita? É a palavra frequente nas cantigas de amor que significa "sofrimento por amor".
Por que o eu-lírico chama a amada de 'Senhor'? O tratamento "mia senhor" (meu senhor, masculino) era usado para reverenciar a superioridade da dama da corte e ratificar o espírito de vassalagem, pois a palavra "senhora" ainda não era usada na época.
O que é Cantiga de Meestria? É um tipo mais difícil de cantiga de amor que não apresenta refrão, estribilho, nem repetições.
A Cantiga de Amigo é um gênero autêntico galego-português, com raízes na poesia popular da Península Ibérica.
Eu-Lírico (EXAME TÓPICO PRIORITÁRIO): Feminino. Atenção: Embora a voz seja feminina, a autoria pertence ao trovador (homem). Trata-se de um fingimento poético (o trovador opera a sentimentalidade feminina).
Tema Central: Saudade, lamento e angústia da mulher que sofre com a ausência do "amigo" (que significa namorado ou amante). Diferente da Cantiga de Amor, o sentimento é mais natural, espontâneo e possível.
A Amada (Realismo): A personagem feminina geralmente pertence às camadas populares (pastoras, camponesas), ou representa a jovem enamorada. Há uma tendência a retratá-la de forma mais carnal e sensorializada, contrastando com a idealização virginal da cantiga de amor. Muitas vezes, o desejo pelo casamento é evidente.
Cenário: Rural ou campesino (ambiente da pastora, fontes, ribeiras, natureza).
Interlocutores: O eu-lírico feminino dialoga frequentemente com a natureza (flores, pinheiros, rios — o que configura o animismo), ou com outras personagens femininas, como a mãe, as irmãs ou as amigas.
Estrutura Formal (EXAME TÓPICO): As composições são simples. É comum o uso da paralelística (ou retornadas), uma técnica arcaica de construção estrófica. O paralelismo consiste na repetição de versos em estrofes sucessivas, com pequenas variações nas palavras terminais, garantindo ritmo e musicalidade. São quase sempre cantigas de refrão.
O ambiente em que a situação amorosa é relatada pode influenciar a classificação.
Pastorela: Descreve o encontro entre um trovador-cavaleiro e uma pastora, em ambiente campestre. Pode ser um híbrido com influência provençal, geralmente dialogado.
Barcarolas/Marinhas: Relacionadas ao ambiente marítimo (mar, ribeira).
Serranilhas: Ocorre em ambiente serrano.
Alvoradas: Ocorre no período da manhã, geralmente sobre a separação dos amantes após a noite.
Bailadas e Romarias: Associadas a festas ou locais de peregrinação.
O Trovadorismo não apenas celebrava o amor, mas também exercia uma visão crítica da sociedade, da corte e dos costumes, especialmente na fase de decadência do feudalismo.
O gênero satírico é de suma importância para os concursos, exigindo a distinção rigorosa entre suas duas modalidades.
Característica | Cantiga de Escárnio | Cantiga de Maldizer |
Crítica | Indireta e velada. | Direta e explícita. |
Identificação | A pessoa satirizada não é nomeada (ou é velada). | A pessoa satirizada é nomeada (ou facilmente identificada). |
Linguagem | Trabalhada, uso de ironia, duplo sentido (equívoco), trocadilhos e ambiguidades. Linguagem culta. | Agressiva, uso de palavrões, baixo calão (chulo), obscenidade. |
Temática | Ridiculariza fraquezas e costumes, mas de forma sutil. | Relata vícios e indiscrições (amorosas, do clero), com agressão direta. |
Exemplo Típico | "Ai, dona fea, velha e sandia!" (João Garcia de Guilhade). | Cantigas que nomeiam o alvo, como Pero Tinhoso ou a abadessa. |
As cantigas satíricas tinham como alvo frequente:
A corte e a nobreza: Ridicularização das fraquezas e vícios dos nobres avaros ou fidalgos.
O clero: Críticas ao comportamento eclesiástico, como a corrupção e a luxúria, ou críticas a figuras como papas e abadessas.
Jograis e Soldadeiras: Críticas aos próprios artistas da boemia, especialmente a ambição dos jograis em ascender socialmente.
O Amor Cortês: Ridicularização das práticas e dos valores estéticos idealizadores (ex: criticar uma mulher feia que deseja ser objeto de contemplação amorosa).
A distinção é sempre clara? Não. Os próprios trovadores e compiladores muitas vezes renunciavam a efetuar rigorosamente a distinção, agrupando-as sob o termo genérico de cantigas satíricas ou "escárnio e maldizer".
O trovador podia ser autor de cantigas líricas e satíricas ao mesmo tempo? Sim. Muitos autores de cantigas de amor e amigo eram também autores de cantigas de escárnio e maldizer. O rei Dom Dinis, por exemplo, foi um dos maiores autores tanto de cantigas de amor quanto de cantigas de amigo.
O Galego-Português, a língua dos trovadores, era um idioma culto, o Galego-Português "ilustre", que se distinguiu do português arcaico comum (o da prosa). Essa linguagem era, em parte, artificial e relativamente fixa, utilizando um léxico restrito, mas também refletia o linguajar popular, especialmente nas cantigas satíricas.
Os traços fonológicos e morfológicos que caracterizam o Galego-Português "ilustre" incluem:
Consoantes: O grafema "z" tinha o valor de /dz/.
Vogais: Pronúncia fechada do "o" em palavras como maior (maor e moor), melhor (milhor) e peior (peor), em consonância com a origem latina.
Terminações Verbais: Conservação do -d- (proveniente do -t- latino) nas segundas pessoas do plural dos verbos (e.g., podedes, trobades).
Hiatos: Conservação de hiatos causados pela síncope de consoantes intervocálicas (e.g., creer, leer).
Nasalidade: Permanência da nasalidade pela queda do -n- (e.g., bõa).
Distinção de Nasais (EXCEÇÃO TÉCNICA): Existiam as terminações -on (do latim -one e -unt) e -an (do latim -ane e -ant), que se distinguiam da terminação -ão (do latim -anu).
Formas Pronominais: Existência de formas como el, chi ou che (= ti ou te), xi ou xe (= si ou se), mia, esto e aquesto.
A técnica de composição formal definia a qualidade da cantiga:
Paralelismo (Leixa-pren): Estrutura fundamental na Cantiga de Amigo, baseada na repetição de versos em sequências determinadas, muitas vezes com pequenas variações verbais. No paralelismo perfeito, o último verso de um par de estrofes é retomado no par seguinte, criando um encadeamento.
Cantiga de Refrão: Cantiga que possui estribilho (verso ou versos que se repetem no final de cada estância).
Cobras: Sinônimo de estrofes ou coplas.
Finda: Remate da cantiga, geralmente constituído por um, dois ou três versos finais.
Cobras uníssonas: Estrofes onde as rimas se repetem em todas as estrofes.
Ateúda: Cantiga que não sofre interrupção sintática entre as estrofes, com o sentido se ligando do primeiro ao último verso.
Dobre: Processo de repetição de palavras na mesma estrofe, em pontos fixos em todas as estrofes.
Embora as cantigas sejam a principal manifestação do Trovadorismo, o período medieval português também viu o desenvolvimento de outros gêneros literários que serviram de base para a futura literatura:
O declínio da poesia trovadoresca e a transição para uma economia mercantil prepararam o aparecimento da prosa em Portugal.
Novelas de Cavalaria: Relatos de aventuras e grandes feitos de heróis e cavaleiros medievais, influenciados pelos ciclos europeus.
Ciclo Arturiano/Bretão: Narrativas sobre o Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda, como a história de Tristão e Isolda e a busca pelo Santo Graal (muito preferidas pelos portugueses, como Amadis de Gaula e A Demanda do Santo Graal).
Cronicões: Relatos romanceados de acontecimentos históricos e sociais, em ordem cronológica, ligados à vida dos nobres e reis.
Nobiliários (Livros de Linhagem): Textos que registravam as árvores genealógicas das famílias nobres.
Hagiografias: Relatos biográficos sobre a vida dos santos e os milagres realizados.
O teatro medieval incluía gêneros de caráter religioso e satírico:
Mistérios e Milagres: Peças de caráter religioso, encenando a vida de Jesus Cristo ou milagres de santos.
Moralidades: Peças com teor didático, alertando sobre aspectos morais.
Autos e Sotties: Peças mais satíricas e profanas. Autos eram curtos e cômicos, ridicularizando pessoas.
A tradição popular dos jograis, ao receber a influência provençal, foi registrada em manuscritos e constituiu o cânone primitivo da Literatura Portuguesa.
O Trovadorismo deixou uma herança profunda que ressoou em movimentos posteriores.
Humanismo (1418-1527): A transição do Trovadorismo para o Humanismo marca uma mudança do teocentrismo para o antropocentrismo. É nesse período que surge a prosa historiográfica de Fernão Lopes (Guarda-mor da Torre do Tombo), considerado o introdutor da historiografia em Portugal, notável por incluir o papel do povo em suas crônicas, demonstrando um espírito humanista.
Sátira e Crítica Social: A tradição da sátira direta e crua das cantigas de maldizer e a ironia das cantigas de escárnio foram retomadas séculos depois. Por exemplo, o poeta barroco Gregório de Mattos Guerra (o Boca do Inferno), conhecido por suas críticas sociais e sua linguagem, exibe uma clara herança trovadoresca.
Cultura Contemporânea: Elementos das cantigas satíricas, como o uso de linguagem chula e pornográfica para crítica e protesto, podem ser observados na produção cultural moderna, como no RAP brasileiro (e.g., Gabriel, o Pensador).
A diferença mais importante reside no eu-lírico: na Cantiga de Amor, o eu-lírico é masculino e canta a dor da vassalagem amorosa por uma dama da corte; na Cantiga de Amigo, o eu-lírico é feminino, lamentando a saudade do amigo/namorado em um ambiente mais popular e natural.
Não, a voz autoral pertence ao trovador, que era homem. O trovador assumia a voz feminina como um artifício poético (fingimento poético) para expressar a sentimentalidade feminina.
A Cantiga de Amigo é considerada autóctone (nascida na região) porque, ao contrário da Cantiga de Amor (que veio de Provença), ela tem raízes na tradição oral popular ibérica.
Sim, predominantemente. A mulher era idealizada e de classe social superior ou casada, tornando a relação tipicamente impossível de ser concretizada e vista como adúltera.
O paralelismo é uma técnica de repetição de ideias e versos com mínimas variações, muito comum nas Cantigas de Amigo, visando a musicalidade e a memorização. Leixa-pren (deixa-toma) é uma forma de paralelismo perfeito onde o último verso de um dístico é retomado como o primeiro verso do próximo dístico, garantindo o encadeamento.
São um vasto conjunto de 420 cantigas de caráter religioso, de louvor à Virgem Maria e narração de seus milagres, atribuídas a Afonso X. Elas são separadas dos gêneros profanos (Cantiga de Amor, Amigo, Escárnio e Maldizer).
O fingimento poético é a capacidade do trovador (autor masculino) de assumir a voz e os sentimentos de uma personagem que não é ele, especialmente a voz da mulher na Cantiga de Amigo.