A Constituição de 1934 não surgiu do vazio, mas foi o resultado de um período de grande efervescência política e social no Brasil. Compreender o contexto é crucial para entender a essência desta Carta Magna.
Os primeiros trinta anos do século XX no Brasil foram marcados pelo enfraquecimento progressivo da Primeira República (República Velha). Esse sistema político, baseado na hegemonia das oligarquias cafeeiras de São Paulo e Minas Gerais, estava sendo corroído em suas bases de apoio. Internacionalmente, a Crise de 1929 abalou profundamente o modelo agroexportador brasileiro, centrado no café, e o liberalismo clássico entrava em crise em diversos países, dando espaço para novas ideologias.
Paralelamente ao declínio da velha ordem, novas forças sociais e políticas ganhavam destaque:
Burguesia Industrial: Embora o desenvolvimento industrial fosse lento na República Velha, a burguesia industrial crescia e começava a ter prestígio social, ameaçando a hegemonia dos cafeicultores.
Operariado: Com o crescimento das indústrias, a população operária em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro aumentou substancialmente. A insatisfação com as péssimas condições de trabalho gerou simpatia por ideias anarquistas, socialistas e comunistas, difundidas por imigrantes europeus. Movimentos de luta, com greves (como a Greve Geral de 1917), eram frequentemente reprimidos.
Tenentismo: Jovens militares de baixa patente organizaram este movimento, que defendia reformas políticas e sociais. Ganhou apoio da classe média e realizou diversas revoltas nos anos 20, sendo Luís Carlos Prestes um de seus líderes mais conhecidos.
Oligarquias Dissidentes: Latifundiários e exportadores de produtos secundários, que não se sentiam representados pelo sistema que protegia o café, aliaram-se ao tenentismo e outros grupos para fazer oposição ao governo.
Em 1930, a Aliança Liberal, composta por mineiros, gaúchos e paraibanos, lançou Getúlio Vargas como candidato à presidência, com propostas de anistia, voto secreto e reformas sociais. Embora Júlio Prestes tenha vencido as eleições, a Aliança Liberal alegou fraude. O assassinato de João Pessoa, político paraibano da Aliança, serviu como estopim para uma revolta armada.
A Revolução de 1930 depôs o presidente Washington Luís e Getúlio Vargas assumiu o comando do Governo Provisório (1930-1934). Este período marcou uma drástica transformação nos rumos do Brasil, de país agrário-exportador para urbano-industrial. Vargas governou por decretos, centralizando o poder, nomeando interventores para os estados e extinguindo a Constituição de 1891. O governo provisório criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, fortalecendo o Estado e investindo na industrialização.
A elite paulista, prejudicada pela ascensão de Vargas e a perda de seu poder político e econômico, viu no Governo Provisório uma ditadura. Em 1932, São Paulo se rebelou, exigindo a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para restaurar a ordem constitucional. Embora militarmente derrotada, a Revolução Constitucionalista de 1932 obteve uma vitória política significativa, forçando Vargas a convocar eleições e a Constituinte.
A convocação da Constituinte foi um passo crucial para a transição do Governo Provisório para o Governo Constitucional.
Em 1933, o Governo Provisório criou a "Comissão do Itamaraty", um grupo de juristas, para elaborar um anteprojeto da Constituição. Este anteprojeto previa um poder executivo federal forte e centralizador, alinhado aos interesses de Getúlio Vargas.
A Assembleia Nacional Constituinte foi inaugurada em 15 de novembro de 1933. Sua composição era inédita e refletia as novas forças em jogo:
Contou com numerosos nomes de destaque e muitos desconhecidos de elevada capacidade intelectual.
Pela primeira vez na história brasileira, incluiu uma deputada mulher, Carlota Pereira de Queirós, médica paulista.
Além dos parlamentares eleitos por sufrágio universal, havia 40 representantes de sindicatos (deputados classistas), uma inovação inspirada em modelos como o fascismo italiano e o nazismo alemão, mas também vista como uma forma de romper com a hegemonia oligárquica e incorporar as "classes produtoras". Essa representação classista, contudo, gerou dúvidas sobre sua legitimidade, com críticos afirmando que o Ministério do Trabalho era o "único eleitor" desses representantes, levantando suspeitas de manipulação por Vargas.
Um episódio notável foi a crítica severa de Carlos Maximiliano, jurista renomado e então Presidente da Comissão Constitucional, ao anteprojeto da Comissão do Itamaraty em 1934. Ele criticou os extremismos ideológicos, a política e os políticos, e a falta de técnica jurídica na elaboração do texto, expressando o temor de que o Brasil fosse visto como "Tupinambás de Casaca" pelo mundo. Ironicamente, ele próprio seria Ministro do Supremo Tribunal Federal (anteriormente Suprema Corte) durante o Estado Novo e seria encarregado de interpretar a Constituição de 1937, influenciada pela "Escola Polaca" que ele havia criticado.
Os trabalhos da Constituinte foram céleres, com sessões contínuas. No entanto, Getúlio Vargas, que ainda governava como ditador provisório, expressou insatisfação e preocupação com o rumo e o texto que estava sendo produzido. Seus diários revelam a pouca simpatia de elementos militares pela Constituinte e a percepção de que o projeto aprovado era "defeituoso, mal redigido, complicado". Ele via a Constituição como um "entrave" à sua ação e temia que o esforço de seu governo fosse perdido com ela.
Promulgada em 16 de julho de 1934, a Constituição foi a segunda republicana e a terceira da história do Brasil. Apesar de sua curta duração, foi progressista e inovadora em diversos aspectos.
A Constituição de 1934 é frequentemente citada como a mais democrática que o Brasil já tivera até aquele momento. Ela buscou organizar um regime democrático que garantisse à Nação unidade, liberdade, justiça e bem-estar social e econômico. Rompeu com a tradição liberal individualista predominante na Constituição de 1891, incorporando normas relacionadas à ordem econômica e social, inspirada na Constituição de Weimar (1919) da Alemanha e na Constituição Mexicana (1917). Este caráter liberal e progressista em relação aos direitos trabalhistas refletia o populismo e o nacionalismo econômico da Era Vargas, buscando a simpatia da população.
Uma das mais notáveis e revolucionárias inovações foi a instituição do voto feminino no Brasil. Este direito, há muito reivindicado, já havia sido previsto pelo Código Eleitoral de 1932.
Inicialmente, o voto era restrito a mulheres em exercício de cargos públicos remunerados (Art. 109).
No ano seguinte, o Código Eleitoral de 1935 especificou que o voto era obrigatório para mulheres com atividades remuneradas e facultativo para as que não recebiam salário. Somente o Código Eleitoral de 1965 equipararia o voto feminino ao masculino.
A Assembleia Constituinte de 1934 também elegeu a primeira deputada federal do país, a médica paulista Carlota Pereira de Queirós.
Outras mudanças importantes no sufrágio incluíram:
Voto secreto: Foi instituído para impedir intimidações e manipulações eleitorais (o famoso "voto de cabresto").
Voto obrigatório para maiores de 18 anos: Reduziu a idade mínima para votar de 21 para 18 anos.
Exclusões: Mantiveram-se as restrições para analfabetos, mendigos, soldados (até o posto de sargento) e pessoas judicialmente declaradas sem direitos políticos.
Criação e institucionalização da Justiça Eleitoral: Organismo destinado a assegurar a integridade dos pleitos.
A Constituição de 1934 foi a primeira da história do Brasil a conter importantes disposições de Direitos Sociais.
Inspirada na Constituição de Weimar, estabeleceu um extenso rol de direitos trabalhistas, muitos dos quais permanecem na legislação brasileira atual:
Salário mínimo.
Jornada de trabalho de 8 horas diárias.
Repouso semanal obrigatório.
Férias remuneradas.
Indenização na despedida sem justa causa.
Proibição do trabalho infantil (menores de 14 anos).
Proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil.
Assistência médica e dentária.
Assistência remunerada a trabalhadoras grávidas.
Previdência social.
Previsão de lei especial para regulamentar o trabalho agrícola e as relações no campo (embora esta lei não tenha sido implementada).
Criação da Justiça do Trabalho: Instituída como órgão administrativo (posteriormente judiciário), com tribunais para reforçar os novos direitos trabalhistas e mediar conflitos entre empregados e empregadores.
Autonomia dos sindicatos: Previa a possibilidade de existência de mais de um sindicato por categoria. No entanto, na prática, o período foi marcado pelo corporativismo e cooptação de sindicatos e suas lideranças, com Vargas organizando-os para serem subordinados ao governo.
A Constituição expressou uma clara preocupação com o desenvolvimento da indústria nacional e a proteção das riquezas do país.
Nacionalização progressiva das minas, jazidas e águas, consideradas relevantes para a defesa econômica e militar.
Obrigação de as empresas manterem no mínimo dois terços de empregados brasileiros.
A propriedade não era mais garantida de forma plena, podendo ocorrer desapropriação mediante indenização em dinheiro quando motivada por questões sociais.
A Constituição de 1934 visava a formação de futuras gerações para o exercício da cidadania.
Ensino primário público, gratuito e obrigatório.
Incentivo ao desenvolvimento do ensino superior e médio, com o objetivo de formar profissionais para os avanços econômicos.
Fixou na União a competência para estabelecer um plano de educação nacional e instituiu percentuais mínimos da arrecadação a serem aplicados nos sistemas educativos.
Defendia o ensino religioso nas escolas públicas e o uso de diferentes grades curriculares para meninos e meninas.
A Carta de 1934 manteve a estrutura republicana, federalista e presidencialista, mas com algumas modificações significativas.
Manteve a nação como uma República Federativa com sistema presidencialista de governo.
Apesar de prever a autonomia dos estados federados, na prática, o governo Vargas promoveu desde cedo a centralização do poder.
Os senados estaduais foram extintos e não voltaram a existir.
A divisão dos poderes permaneceu tripartida (Executivo, Legislativo, Judiciário).
Houve a extinção do bicameralismo rígido, com o Senado assumindo um papel mais auxiliar à Câmara dos Deputados (bicameralismo desigual ou quase unicameralismo para alguns).
O Estado permaneceu laico, mas essa laicidade foi mitigada, permitindo efeitos civis ao casamento religioso e o ensino religioso em escolas públicas, o que antes era vedado. O termo "Deus" foi incluído no preâmbulo da Constituição, gerando debates sobre a verdadeira laicidade.
A Constituição de 1934 foi um marco na valorização do Poder Judiciário.
Garantiu a independência da Corte Suprema (então Supremo Tribunal Federal), com subordinação dos outros tribunais a ela.
Os integrantes do Judiciário possuíam vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, visando a isenção de julgamento.
Entre as criações técnico-jurídicas, destacam-se:
Mandado de Segurança: Instituto destinado à defesa de direitos "certos e incontestáveis" da pessoa humana, em casos de ameaça ou violação por ato inconstitucional ou ilegal de autoridade.
Ação Popular: Visando a declaração de nulidade ou anulação de atos lesivos ao patrimônio público.
A Constituição de 1934 era rígida, com procedimentos complexos para sua alteração, e a forma republicana federativa foi elevada à categoria de cláusula pétrea.
Era uma constituição prolixa ou analítica, contendo 187 artigos na parte permanente e 26 nas Disposições Transitórias, incluindo matérias de conteúdo não constitucional como família, educação, cultura e segurança nacional.
Apesar de suas inovações, a Constituição de 1934 foi a menos duradoura da história brasileira, vigorando por apenas três anos e meio (1934-1937).
Uma das grandes contradições foi que as diretrizes eleitorais democráticas, incluindo o voto direto, não valeram para a escolha do novo presidente. A Assembleia Nacional Constituinte elegeu Getúlio Vargas indiretamente para o primeiro quadriênio constitucional, garantindo sua permanência no poder até 1938. Isso beneficiou o legado da Revolução de 1930 e o poder centralizador de Vargas.
O próprio Getúlio Vargas foi um dos maiores críticos da Constituição de 1934. Em um discurso de 1940, ele a descreveu como uma "constitucionalização apressada, fora de tempo", feita ao sabor de influências pessoais e partidarismo, "divorciada das realidades existentes". Suas principais críticas eram:
Caráter inflacionário: Vargas calculava que a implementação de todas as nacionalizações (bancos, minas) e direitos sociais elevaria muito os custos para as empresas privadas, as despesas do governo e o déficit público. Um exemplo citado era a despesa com o socorro a famílias numerosas.
Liberalismo excessivo: Considerava-a "liberal demais", o que, em sua visão, não permitia um combate adequado à "subversão". Ele a via como um entrave à sua governabilidade.
A literatura jurídica e histórica aponta a fragilidade intrínseca da Constituição de 1934, muitas vezes descrita como uma "constituição que nasceu morta". Diversos fatores contribuíram para isso:
Fragmentação política: A sociedade no período era extremamente fragmentada, e a arquitetura legal da Constituição não conseguiu conter e absorver efetivamente os conflitos existentes, revelando uma baixa capacidade de legitimação e funcionalidade.
Descompasso entre norma e realidade: As regras constitucionais, em muitos aspectos, eram mais avançadas do que as forças sociais capazes de sustentá-las.
Hibridismo de propostas: A Constituição oscilou entre o retorno ao modelo de 1891 (com forte influência das oligarquias) e a resposta às novas questões sociais. Esse "mosaico de tendências" não permitiu a construção de um projeto político hegemônico para o país.
Abertura para autoritarismo: Apesar de democrática, já abria brechas para perseguições, como a Lei de Segurança Nacional, que seria aplicada em 1935 para reprimir a Intentona Comunista e dissolver a Aliança Nacional Libertadora.
A instabilidade política e a suposta "ameaça comunista" (com a forja do Plano Cohen) foram utilizadas por Vargas como pretexto para a instauração de um regime autoritário. O descontentamento de Vargas com as limitações impostas pela Constituição, aliadas ao contexto mundial de ascensão de regimes totalitários, culminou no Golpe de Estado de 1937.
Em 10 de novembro de 1937, Vargas outorgou uma nova constituição, a Constituição de 1937 (conhecida como "Polaca"), que transformou o presidente em ditador e o estado revolucionário em autoritário, inaugurando o Estado Novo (1937-1945). A Carta de 1934 foi assim invalidada, tornando-se a Carta Magna de menor duração na história do Brasil.
Apesar de sua fugacidade, a Constituição de 1934 deixou heranças cruciais para o direito constitucional brasileiro.
Democratização do voto: Institucionalizou o voto secreto e o voto feminino, ampliando a cidadania política.
Direitos sociais e trabalhistas: Foi a precursora da legislação trabalhista no Brasil, com a introdução de direitos fundamentais para os trabalhadores e a criação da Justiça do Trabalho.
Fortalecimento do Judiciário: Reconheceu a maior independência do Poder Judiciário e institucionalizou a Justiça Eleitoral.
Inovações jurídicas: Trouxe o Mandado de Segurança e a Ação Popular, mecanismos importantes para a defesa dos direitos dos cidadãos e do patrimônio público.
Modernização do Estado: Embora com contradições, a Carta de 1934 foi um passo na modernização das instituições sociais e econômicas do país, influenciando projetos desenvolvimentistas posteriores.
A Constituição de 1934, portanto, é um testemunho das tensões e compromissos de um período de transição, onde a busca por um Estado mais moderno e socialmente justo colidia com tendências centralizadoras e autoritárias. Seu estudo é indispensável para compreender a evolução das garantias constitucionais e dos direitos no Brasil.