A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC), promulgada em 26 de agosto de 1789, é um dos documentos mais emblemáticos da história, marcando o fim do Antigo Regime na França e o início de uma nova era. Este texto fundamental foi elaborado pela Assembleia Nacional Constituinte, formada após a reunião dos Estados Gerais, e serviu como o primeiro passo para a criação de uma constituição para a recém-nascida República Francesa.
Sua criação foi profundamente inspirada pelos ideais filosóficos do século XVIII, o Iluminismo, e pela Declaração de Independência Americana de 1776. A Declaração francesa não apenas oficializou direitos individuais, mas também esboçou uma nova forma de organização social, concebendo a soberania do povo como inerente à nação, e não a monarcas ou divindades.
O documento é composto por um preâmbulo e 17 artigos, que definem direitos "naturais e imprescritíveis" do homem. Seu objetivo primordial era expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que estes servissem de lembrança permanente dos direitos e deveres de todos os membros do corpo social. A Assembleia Nacional reconhecia e declarava esses direitos, partindo do princípio de que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem eram as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos.
A Declaração de 1789 tem suas raízes no jusnaturalismo moderno, uma corrente de pensamento jurídico que se desenvolveu nos séculos XVII e XVIII. O jusnaturalismo, em contraste com o positivismo jurídico, defende a existência de princípios de direito que transcendem as leis criadas pelo Estado ou pela sociedade, ou seja, normas cuja fonte não é a sanção estatal ou social.
A DDHC introduziu a noção importantíssima de "sujeito de direito", uma das principais consequências do jusnaturalismo moderno. Essa concepção difere significativamente do jusnaturalismo medieval, que via a dignidade humana como consequência do lugar do homem na criação divina. No jusnaturalismo moderno, o homem é titular de certos direitos simplesmente por ser homem, pela sua própria natureza humana, pela sua condição de pessoa.
Assim, os direitos declarados na DDHC são considerados naturais porque procedem da própria essência racional do homem, não sendo uma concessão de governos ou do Estado. A Declaração não estava meramente "criando" direitos, mas "reconhecendo" valores e direitos que já existiam como normas suprapositivas, cuja violação era percebida pela consciência humana.
O racionalismo é uma característica central do jusnaturalismo que influenciou a Declaração. A razão humana foi teorizada como a capacidade de encontrar princípios jurídicos naturais que deveriam substituir costumes e o direito romano. Para pensadores como Grotius, o direito não é mais uma derivação da vontade de Deus, mas um conjunto de princípios que emanam da racionalidade humana, conferindo ao homem direitos sagrados e inalienáveis por natureza.
A Declaração reforça que o princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na Nação, e nenhuma corporação ou indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente. Este conceito foi crucial para legitimar a derrubada do absolutismo monárquico.
Os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, embora não explicitamente no texto original da DDHC, são o lema que determinou as diretrizes da Revolução Francesa e, por extensão, o espírito da Declaração.
A Declaração é composta por 17 artigos que detalham os direitos considerados fundamentais:
"Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ter como fundamento a utilidade comum". Este artigo estabelece a liberdade e a igualdade como condições naturais do ser humano, e não privilégios concedidos, permitindo apenas distinções sociais baseadas na utilidade comum, e não no nascimento.
"A finalidade de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão". Este artigo é um pilar do jusnaturalismo, afirmando que o Estado existe para proteger direitos que lhe são anteriores, enfatizando a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão como essenciais.
Art. 4º: "A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei". A liberdade é definida em relação aos outros, limitada pela lei para garantir a mesma liberdade a todos.
Art. 5º: "A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo o que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene". Este princípio reforça a legalidade, garantindo que os indivíduos só podem ser impedidos de fazer algo se for expressamente proibido por lei, protegendo-os contra arbítrios.
"A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos". Este artigo é um marco na democracia representativa, afirmando a igualdade de todos perante a lei e o direito de participar de sua formação, além de garantir o acesso a cargos públicos com base no mérito.
Art. 7º: Proíbe a prisão arbitrária, exigindo que prisões e acusações sigam a lei.
Art. 8º: Determina que as penas devem ser estrita e evidentemente necessárias, e aplicadas por lei prévia ao delito.
Art. 9º: Consagra a presunção de inocência e a repressão de rigor desnecessário na prisão.
Estas disposições são essenciais para o devido processo legal e a proteção contra o autoritarismo.
Art. 10º: "Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei". Garante a liberdade de pensamento e religião, com a ressalva da ordem pública.
Art. 11º: "A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos dessa liberdade nos termos previstos na lei". Assegura a liberdade de imprensa e expressão, embora responsabilizando por abusos legais.
"Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização". Este artigo eleva a propriedade privada à condição de direito natural, sagrado e inviolável, um reflexo dos ideais burgueses da época. A possibilidade de privação ocorre apenas em casos de necessidade pública e mediante indenização justa e prévia.
"A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição". Este é um dos artigos mais citados, definindo o conceito de Constituição em termos de garantia de direitos e separação de poderes. Sem esses dois pilares, uma sociedade não pode ser considerada verdadeiramente constitucional.
A Declaração de 1789, embora revolucionária em seus princípios, apresentava limitações importantes em seu alcance, refletindo o contexto social e político de sua época.
Apesar de falar em "direitos do homem", o documento foi primeiramente concebido para o cidadão francês, e seu universalismo era, em grande parte, uma pretensa universalidade.
As principais exclusões incluíam:
Mulheres: A Declaração não abrangia explicitamente os direitos das mulheres. Como resposta, Olympe de Gouges redigiu a "Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã" em 1791, criticando a Revolução por ser incompleta ao não estender a igualdade às suas "companheiras".
Escravizados: Não estava claro se os direitos do homem incluíam as populações das colônias francesas, onde a escravidão era predominante. Este tema gerou intensos debates, e a abolição só viria mais tarde (1794, e depois restaurada e novamente abolida em 1848).
Voto Censitário: A Assembleia estabeleceu o voto censitário (condicionado à renda) e masculino, excluindo a maioria da população masculina sem recursos, o que gerou questionamentos sobre a coerência com a própria Declaração.
Apesar das limitações, a DDHC teve um impacto antiabsolutista profundo e repercussão mundial. Ela serviu como um modelo para o constitucionalismo liberal, influenciando textos similares em diversos países da Europa e América Latina no século XIX. Jornalistas e intelectuais em várias nações traduziram e divulgaram o texto, mesmo sob censura, demonstrando o poder de seus ideais.
A Declaração de 1789 não é apenas um documento histórico, mas uma referência contínua para o desenvolvimento dos direitos humanos e constitucionais.
A Declaração de 1789 foi uma das principais inspirações para a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) após as atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Catorze dos trinta artigos da DUDH de 1948 fazem referência direta à Declaração de 1789, por vezes com as mesmas palavras.
É crucial entender as distinções entre os dois documentos, especialmente em concursos públicos:
Universalidade:
DDHC (1789): Destinada aos "direitos do homem e do cidadão" francês, com universalidade limitada e exclusões de mulheres, escravizados e cidadãos passivos.
DUDH (1948): Caráter de universalidade plena, abrangendo todas as pessoas independentemente de fronteiras, raça, sexo, língua ou religião. Reconhece a dignidade inerente a todos os seres humanos.
Direitos Sociais, Econômicos e Culturais:
DDHC (1789): Foco nos direitos civis e políticos (liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, igualdade jurídica, presunção de inocência, liberdade de opinião e crença).
DUDH (1948): Além de reafirmar os direitos civis e políticos do século XVIII, inovou ao incluir direitos econômicos, sociais e culturais inéditos. Exemplos: direito à segurança social, direito ao trabalho com pagamento igual por trabalho igual, salário de subsistência, direito ao descanso e lazer, e direito à educação gratuita nos níveis elementares.
Igualdade:
DDHC (1789): Assegura primordialmente a igualdade jurídica entre os cidadãos.
DUDH (1948): Busca uma proteção da igualdade material entre os indivíduos, além da igualdade formal. Preocupa-se com a dignidade de todas as pessoas e o respeito às diferenças específicas de gênero, cor, crença, etnia, protegendo as minorias.
Pensadores do século XX, como Joaquín Herrera Flores, Michel Villey e Norberto Bobbio, levantaram críticas importantes aos direitos humanos, mesmo após a DUDH:
Joaquín Herrera Flores: Critica a percepção de que os direitos humanos estão "estancados" em tratados, o que impede o avanço e questionamento do que já foi positivado. Ele aponta a exclusão de milhões de pessoas devido à falta de instrumentos para a efetivação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Norberto Bobbio: Reconhece a DUDH como a maior prova histórica de consenso sobre um sistema de valores, mas também alerta que, apesar dos avanços, "o caminho a percorrer ainda é longo", dado o descompasso entre a proclamação dos direitos e sua efetivação global.
Michel Villey: Afirma, de forma contundente, que os direitos humanos "não chegaram aos Gulags, nas torturas de El Salvador, nos enforcamentos de Khomeini, em crianças esqueléticas". Ele destaca o "choque perturbador" entre a expectativa de progresso e felicidade e a realidade das atrocidades, especialmente para uma sociedade que abandonou antigas crenças que faziam aceitar o sofrimento.
A Declaração de 1789, assim como os direitos humanos em geral, continua sendo objeto de disputas e apropriações, criticada tanto pela direita (por solapar tradições) quanto pela esquerda (por ser um "falso universalismo" burguês).
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão teve uma influência inegável no desenvolvimento do direito brasileiro e em sua Constituição de 1988.
A Constituição Federal de 1988 (CF/88), conhecida como a "Constituição Cidadã", é considerada o ápice das garantias coletivas e individuais na história brasileira e representa um equilíbrio entre o país e os Direitos Humanos. A DDHC de 1789 serviu como um modelo e base filosófica para o constitucionalismo que busca resguardar direitos fundamentais.
Uma análise dos preâmbulos da DDHC de 1789 e da CF/88 revela semelhanças notáveis, demonstrando a continuidade dos ideais:
DDHC (1789): "Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem...".
CF/88 (1988): "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL".
Ambos os documentos reforçam a legitimidade dos membros da Assembleia Nacional em responder à necessidade popular por representação e garantir direitos essenciais. A DDHC projeta uma ideia elementar de democracia, que daria origem ao Estado de Direito e seus princípios, como a separação de poderes, a prevalência da lei e a admissão de direitos fundamentais. A CF/88, aprendendo com os progressos históricos, elabora de forma mais sistemática um Estado Democrático, incorporando os valores da Declaração Francesa de forma positiva, fundamentada na ordem normativa e manifestando a soberania popular.
Os conceitos basilares como Igualdade, Liberdade e Fraternidade, originários da Assembleia Francesa de 1789, não se perderam, mas foram transformados e adaptados, evoluindo constantemente com a atribuição de pensamentos positivistas e democráticos.
A principal inovação foi a ruptura com o absolutismo e a afirmação de direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, que preexistiam ao Estado e que este deveria proteger. Introduziu a soberania popular e a ideia de que o governo deve servir ao povo, e não o contrário.
São a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Estes são considerados os pilares do jusnaturalismo que inspirou a Declaração.
Não, não era plenamente universal. Embora o termo "homem" fosse usado, na prática, o documento se referia principalmente ao "cidadão francês" e não abrangia explicitamente mulheres, escravizados ou homens sem renda suficiente para o voto censitário. O universalismo foi um ideal a ser alcançado, mas com limitações de sua época.
A Declaração de 1789 serviu como um modelo fundamental para o constitucionalismo liberal em todo o mundo. Foi uma das principais inspirações para a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da ONU, e continua sendo uma referência para as constituições democráticas modernas, incluindo a brasileira.
O jusnaturalismo moderno é o alicerce filosófico da Declaração de 1789. Ele postula que os direitos do homem (liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão) são inerentes à natureza humana racional, preexistem ao Estado e devem ser reconhecidos e protegidos por ele. A Declaração, ao "reconhecer e declarar" esses direitos, afirmou sua base jusnaturalista, em oposição à ideia de que os direitos seriam meras criações estatais.
Embora frequentemente usados como sinônimos, há uma distinção conceitual importante, especialmente em contextos jurídicos:
Direitos Humanos: Geralmente se referem aos direitos que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação a determinada ordem constitucional. Têm um caráter supranacional e universal, sendo identificados em documentos de direito internacional (como a DUDH).
Direitos Fundamentais: Aplicam-se aos direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de um determinado Estado. Representam o reconhecimento desses direitos por um poder político dentro de um ordenamento jurídico específico, geralmente garantidos em normas constitucionais.
A Declaração de 1789 elevou a propriedade ao status de direito inviolável e sagrado (Art. 17º), refletindo o ideal liberal e burguês da época. Naquele contexto, não havia movimentos significativos contra a propriedade privada. Em constituições e declarações posteriores, como a DUDH de 1948, o direito à propriedade continua presente, mas a concepção evoluiu para considerar a função social da propriedade, e os direitos sociais e econômicos passaram a ter maior destaque, balanceando o individualismo da propriedade com interesses coletivos e de dignidade humana.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, portanto, permanece um marco indelével na trajetória da humanidade, um testemunho das lutas contra o absolutismo e da busca por dignidade e justiça. Seus princípios, embora moldados por seu tempo, continuam a ser reinterpretados e expandidos, impulsionando a constante evolução dos direitos humanos em um mundo em transformação.