Você já se perguntou como o conhecimento é possível? Ou como podemos ter certeza sobre o que sabemos? Immanuel Kant, um dos maiores filósofos do século XVIII, dedicou sua vida a responder a essas e outras questões fundamentais. Sua teoria do conhecimento, conhecida como Filosofia Transcendental ou Idealismo Transcendental, é um marco na história da filosofia, buscando justificar a possibilidade do conhecimento científico de sua época.
Kant percebeu que nem o empirismo britânico (que enfatizava a experiência) nem o racionalismo continental (que priorizava a razão) conseguiam explicar satisfatoriamente a solidez da ciência moderna. Ele propôs uma solução revolucionária: o Idealismo Transcendental.
Essa abordagem sugere que, embora nosso conhecimento se fundamente na experiência, a mente humana não é uma "cera passiva" que apenas recebe informações. Pelo contrário, ela impõe ativamente suas próprias "formas a priori" (condições prévias à experiência) sobre o que percebe, moldando a realidade como a conhecemos.
Essa inversão na forma de pensar o conhecimento é tão significativa que Kant a chamou de Revolução Copernicana na filosofia. Assim como Copérnico mudou a visão de um universo geocêntrico para um heliocêntrico, Kant deslocou o foco do objeto para o sujeito: não é a mente que se adapta ao objeto, mas o objeto que deve se adaptar à mente para ser conhecido.
Para entender a genialidade de Kant, é essencial compreender o palco em que ele atuou. O século XVIII, na Alemanha, foi uma era de efervescência intelectual e científica, marcada por mentes brilhantes como Isaac Newton, Nicolau Copérnico, René Descartes, Gottfried Wilhelm Leibniz e David Hume.
A Redescoberta do Homem e da Ciência: A Idade Moderna trouxe um novo olhar para o ser humano e suas capacidades, especialmente sua habilidade de produzir ciência. As ciências medievais, baseadas no aristotelismo, davam lugar a novas teorias e filosofias.
A Guinada de Descartes: René Descartes já havia dado um passo importante ao focar na subjetividade, no "cogito" (penso, logo existo) como fundamento do conhecimento.
O Empirismo e a Experiência: Filósofos como John Locke e David Hume valorizavam a experiência como a fonte primária de todo o conhecimento. Eles criticavam a universalidade de certos conhecimentos que não podiam ser diretamente observados. Para eles, a mente nasceria como uma "tábula rasa", preenchida pela experiência.
O Racionalismo e a Razão Pura: Em contrapartida, pensadores como Leibniz defendiam a força da razão na busca por um conhecimento seguro, postulando que a mente possuía ideias inatas e princípios que independiam da experiência.
A Física de Newton: Newton havia construído uma teoria do espaço e do tempo absolutos, com pressupostos científicos que desafiavam as visões medievais.
Nesse cenário de intensos debates teóricos, Kant se viu diante de um grande desafio: como validar o conhecimento científico moderno?. Ele percebeu as limitações tanto das respostas empiristas quanto das racionalistas e buscou construir um pensamento que pudesse superar ambas as correntes, conservando elementos de cada uma.
Kant confiou à razão humana a tarefa de construir um conhecimento seguro sobre a natureza. Para ele, a razão não é passiva, mas se torna legisladora, dominante no processo de conhecimento. Contudo, afirmar uma razão poderosa implica também estabelecer seus limites, e foi exatamente isso que Kant fez em sua obra mais famosa, a Crítica da Razão Pura. Foi o filósofo David Hume, com seu questionamento sobre os pressupostos da metafísica tradicional, que, segundo o próprio Kant, o "despertou de seu sono dogmático".
A filosofia kantiana se posiciona como uma crítica tanto ao empirismo quanto ao racionalismo, especialmente no que diz respeito ao papel da razão na constituição do ser humano. Kant dá um valor extremo à razão, em detrimento da natureza (instintos) ou de qualquer outro ente considerado superior.
Segundo Gilles Deleuze, um importante comentador de Kant, a grande inovação kantiana em relação aos empiristas e racionalistas é o papel da razão como um fim em si mesma.
Autonomia da Razão: Para Kant, a razão é o único juiz de seus próprios interesses. Isso significa que os fins ou interesses da razão não podem ser julgados pela experiência (como queriam os empiristas) nem por outras instâncias que permaneçam exteriores ou superiores à razão (como divindades ou valores metafísicos pré-estabelecidos, como queriam alguns racionalistas).
Crítica ao Empirismo: A filosofia kantiana se afasta do empirismo ao discordar do papel atribuído à experiência como a única ou principal fonte de conhecimento. Kant não exclui a experiência, mas defende que a razão tem a função dominante na construção do conhecimento. Para ele, uma ação racional é aquela que submete a natureza aos ditames da razão.
Crítica ao Racionalismo: Kant também se distancia dos racionalistas que viam a razão como um meio para atingir fins superiores. Por exemplo, Descartes evocava uma substância divina para criar e sustentar o mundo, e Leibniz propunha uma harmonia pré-estabelecida. Kant, por sua vez, propõe a filosofia transcendental, na qual a própria razão, com suas estruturas a priori, é o fundamento do conhecimento.
Essa mudança de paradigma, invertendo a relação entre sujeito e objeto, é a essência da Revolução Copernicana do conhecimento kantiana.
Para compreender o Idealismo Transcendental, é fundamental mergulhar na teoria dos juízos de Kant, que ele apresenta na Crítica da Razão Pura.
Kant introduz o conceito de Conhecimento Transcendental como aquele que "se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori". Ou seja, o foco não está no objeto em si, mas nas capacidades da nossa razão para conhecê-lo. A razão passa a ser a reguladora do processo e a validadora do conhecimento.
Para Kant, existem inicialmente dois tipos de juízos:
Juízos Analíticos:
Não trazem conhecimento novo.
O predicado já está contido, implicitamente, no sujeito.
São a priori (independentes da experiência), ou seja, sua verdade é conhecida apenas pela análise dos conceitos.
São necessários e universais.
Exemplo: "O corpo é extenso." A ideia de extensão já faz parte do conceito de corpo, o predicado não acrescenta nada de novo.
Juízos Sintéticos:
Trazem conhecimento novo.
O predicado acrescenta algo ao sujeito que não estava contido nele.
Via de regra, são a posteriori (dependentes da experiência).
São contingentes e particulares.
Exemplo: "O carro é vermelho." O fato de um carro ser vermelho só pode ser verificado pela experiência e não é uma verdade necessária ou universal (carros podem ter outras cores).
A questão central para Kant é a existência e a possibilidade de um terceiro tipo de juízo: os Juízos Sintéticos a priori.
Características:
Possuem a universalidade e necessidade dos juízos analíticos (são a priori, independentes da experiência).
Mas, como os juízos sintéticos, acrescentam algo de novo ao sujeito, expandindo nosso conhecimento.
Embora não partam da experiência, a experiência está presente de alguma forma, mas não como fonte de sua validade universal.
Exemplos:
Matemática: "7 + 5 = 12." A ideia de "12" não está contida na ideia de "7 + 5" (não é analítico), mas a soma é uma verdade universal e necessária, independente de qualquer experiência particular.
Física: "Toda causa tem um efeito." A relação de causalidade não é extraída diretamente da experiência, mas é um princípio que a mente impõe para organizar a experiência, sendo universal e necessária para o pensamento científico.
Para Kant, esses juízos são a base da matemática e das ciências em geral. A grande questão que ele se propôs a responder, o "problema geral da razão pura", era: "Como são possíveis os juízos sintéticos a priori?".
A metafísica, para Kant, deveria se debruçar sobre esse problema, buscando elevar-se a um "patamar superior", deixando de ser um mero "tatear entre simples conceitos". A capacidade de explicar a possibilidade desses juízos seria a chave para a solidez da ciência e da própria metafísica.
A "Revolução Copernicana" de Kant é a metáfora perfeita para descrever a profunda mudança de perspectiva que ele propôs na teoria do conhecimento.
A Grande Virada: Antes de Kant, a concepção predominante era que o nosso conhecimento devia se regular pelos objetos; a mente era um espelho da realidade externa. No entanto, todas as tentativas de obter conhecimento a priori (universal e necessário) apenas observando os objetos falhavam.
O Objeto se Adapta ao Sujeito: Kant inverteu essa lógica. Ele propôs que, para que o conhecimento seja possível – especialmente o conhecimento a priori que fundamenta a ciência –, é o objeto que deve ser regulado pelas capacidades cognitivas do sujeito. Ou seja, não conhecemos as coisas como elas são "em si mesmas", mas como elas nos aparecem, moldadas pela estrutura da nossa mente.
A Razão como Legisladora: Assim como Copérnico colocou o Sol no centro do universo, Kant deslocou o sujeito, mais especificamente a razão (com suas estruturas a priori), para o polo central da cognição. Isso significa que o mundo que conhecemos – o mundo dos fenômenos – se comporta de acordo com as leis racionais que nossa própria mente impõe. O conhecimento construído racionalmente sobre esse mundo fenomênico é, portanto, seguro.
Essa revolução visava tirar a metafísica do "vago tatear" em que se encontrava. Kant argumentou que, enquanto não se pensassem adequadamente os polos do conhecimento (sujeito e objeto), a metafísica continuaria sem rigor.
Fenômeno e Coisa-em-si: Para Otfried Höffe, a revolução copernicana de Kant implica que os objetos do conhecimento não se revelam por si mesmos; eles são "trazidos à luz pelo sujeito (transcendental)". Por isso, não podem mais ser considerados como coisas que existem "em si" (que Kant chamará de noúmeno ou coisa-em-si), mas sim como fenômenos. Isso destrói a ideia de uma ontologia autônoma (a ideia de que o entendimento humano poderia esgotar todas as possibilidades de conhecer as coisas em sua essência).
Limitação e Segurança: Kant reconheceu que há uma grande possibilidade de o homem não ser capaz de esgotar todo o conhecimento da natureza. Contudo, essa limitação do conhecimento humano (o fato de só conhecermos os fenômenos) não implica na impossibilidade de um conhecimento seguro. Pelo contrário, ela é a base para fundar um conhecimento preciso e seguro, o conhecimento dos fenômenos, que é regulado pelo sujeito transcendental.
Em resumo, a Revolução Copernicana de Kant é a chave para fundamentar a priori a ciência moderna, mostrando como é possível conhecer e fazer ciência sem apelos a fatores externos ou transcendentes, mas sim por meio das estruturas internas da nossa própria razão.
O Idealismo Transcendental de Kant se estrutura em como nossas faculdades cognitivas operam para produzir conhecimento. Kant descreve nosso "ânimo" ou "aparelho representacional" como constituído por três faculdades principais: a de conhecer (ciência), a de apetecer (ética) e a de julgar (estética). Nosso foco aqui é a faculdade de conhecer.
O processo de conhecimento, segundo Kant, envolve duas faculdades principais que trabalham em conjunto: a Sensibilidade e o Entendimento.
A Sensibilidade é a nossa capacidade de receber representações (ou seja, de ser afetado pelos objetos) e de nos fornecer intuições (sensações). Kant afirma que a mente não é uma "cera passiva"; ela organiza o material que recebe da sensação.
Essa organização é possível graças às Formas Puras da Sensibilidade, que são a priori, ou seja, condições anteriores e independentes de toda e qualquer experiência. Elas são o Espaço e o Tempo.
Espaço:
Kant o considera a condição de possibilidade de todos os fenômenos externos.
É uma representação a priori que necessariamente fundamenta todos os fenômenos externos.
Ao contrário de outros filósofos que viam o espaço como algo experimental (a posteriori), para Kant, ele é uma condição necessária para que as relações entre os fenômenos possam existir.
O espaço é uno e serve como a condição para a multiplicidade dos objetos.
Tempo:
É a forma pura da sensibilidade que permite a noção de sucessão ("tempos diferentes não são simultâneos, mas sucessivos").
É por meio do tempo que temos a noção de mudança, movimento, etc..
Enquanto o espaço está mais relacionado aos sentidos externos, o tempo está mais ligado aos sentidos internos (a forma como representamos a nós mesmos e nossos estados internos).
Ponto Chave: Todo o conhecimento que o ser humano possui é dado no tempo e no espaço. Não conseguimos representar nada sem que o representemos por meio dessas formas puras da sensibilidade. Elas são as "lentes" através das quais percebemos o mundo. A doutrina que estuda os dados da sensibilidade e suas formas a priori é a Estética Transcendental.
Após os fenômenos serem recebidos e representados no espaço e tempo pela sensibilidade, eles são então pensados e organizados pelo Entendimento. É do entendimento que provêm os conceitos.
Categorias (Conceitos Puros do Entendimento):
O entendimento ordena e classifica as coisas segundo uma série de conceitos que não são intuídos (percebidos pelos sentidos), mas deduzidos do próprio intelecto.
São as formas puras do entendimento, princípios universais e necessários pelos quais organizamos nossa experiência.
Kant as dividiu em quatro classes, cada uma com três momentos, totalizando 12 categorias:
Quantidade: Unidade, Pluralidade, Totalidade.
Qualidade: Realidade, Negação, Limitação.
Relação: Inerência e Subsistência (substância e acidente), Causalidade e Dependência (causa e efeito), Comunidade (ação recíproca entre agente e paciente).
Modalidade: Possibilidade/Impossibilidade, Existência/Não-existência, Necessidade/Contingência.
Por meio dessas categorias, o sujeito organiza os fenômenos que representou via espaço e tempo, produzindo o que chamamos de conhecimento.
O intelecto é discursivo (opera por conceitos e julgamentos), e seus conceitos são funções que unificam, ordenam e sintetizam o múltiplo dado na intuição em uma representação comum. Pensar, para Kant, é propriamente julgar.
Apercepção Transcendental: O êxito da Revolução Copernicana está em afirmar que o fundamento do objeto está no sujeito. A unidade do objeto na experiência é constituída, na realidade, pela unidade sintética do sujeito pensante, que Kant denomina Apercepção Transcendental. O "Eu penso" é a unidade originária e suprema da autoconsciência, comandada pelas 12 categorias, sendo o princípio de todo conhecimento humano.
Esquema Transcendental e Imaginação Transcendental: A intuição (sensibilidade) e o conceito (entendimento) são "heterogêneos" (um é dado, o outro é pensado). Para que o conhecimento seja possível, eles precisam ser unidos por um "terceiro termo homogêneo": o Esquema Transcendental, produzido pela Imaginação Transcendental.
"Juízos feitos somente por intuição (sem conceito) são juízos cegos, vagos."
"Juízos feitos somente com conceito (portanto, sem intuição) levam-nos aos erros da imaginação (paralogismo)."
Portanto, o conhecimento só é possível quando a intuição se alia ao conceito. O fenômeno dado na intuição, aliado às categorias do intelecto, torna a coisa um objeto "para mim".
A Analítica Transcendental (a primeira parte da Lógica Transcendental) se dedica a estudar essa origem e aplicação dos conceitos a priori. Graças a esse complexo processo, a ciência pode realizar juízos universais e necessários através dos esquemas a priori da razão humana.
Uma das distinções mais importantes e frequentemente mal interpretadas na filosofia de Kant é entre fenômeno e noúmeno (também chamado de "coisa-em-si").
O que é: O fenômeno é a coisa como ela aparece para nós. São as representações subjetivas que construímos a partir das afecções dos objetos, mediadas pelas nossas faculdades cognitivas.
Acessibilidade: É o objeto de nossa experiência possível. Isso significa que o mundo fenomenal inclui todas as coisas que podem ser experimentadas por um ser humano, mesmo que ninguém as tenha experimentado ainda (como planetas distantes ou partículas subatômicas, se concebidas espaço-temporalmente).
Condições: Os fenômenos estão sujeitos às condições da nossa sensibilidade (Espaço e Tempo) e do nosso entendimento (Categorias).
Conhecimento: Temos conhecimento (cognição) dos fenômenos. É nesse mundo fenomenal que a ciência opera e onde o conhecimento seguro é possível.
Não é a experiência em si: Um fenômeno não é a mesma coisa que a experiência de um objeto, mas o objeto tal como é acessível da nossa perspectiva humana e sensível.
O que é: O noúmeno (ou coisa-em-si) é a coisa como ela é em si mesma, independente das condições da nossa experiência e das nossas faculdades cognitivas.
Acessibilidade: Por definição, o noúmeno não pode ser experimentado por nós. Não podemos ter conhecimento (cognição) dele.
Natureza: Não está no espaço ou no tempo, pois Espaço e Tempo são características da nossa experiência sensível e, portanto, pertencem aos fenômenos. É um objeto "considerado em abstração das condições da nossa experiência".
O que podemos fazer com ele: O noúmeno pode ser pensado, mas não conhecido.
Fundamentação: A coisa-em-si é caracterizada como aquilo que "fundamenta uma aparência". O que isso significa exatamente é um ponto de grande controvérsia entre os intérpretes de Kant, pois pode não ser uma relação causal, mas alguma outra forma de dependência.
Embora os termos "noúmeno" e "coisa-em-si" sejam frequentemente usados de forma intercambiável, há uma nuance importante em Kant:
O noúmeno é, estritamente falando, um objeto como ele seria dado a uma "intuição intelectual". Kant sugere que apenas Deus teria esse tipo de intuição, capaz de apreender objetos diretamente, sem ser afetado sensivelmente no espaço e no tempo. Para nós, humanos, o termo noúmeno pode indicar simplesmente algo que nos falta, uma fronteira que não devemos cruzar.
A coisa-em-si é explicitamente caracterizada como aquilo que fundamenta uma aparência. É o objeto considerado como ele é "em si", independente da cognição ou apreensão de qualquer pessoa.
A diferença principal é que a intuição de Deus (o noúmeno em sentido positivo) produziria seus objetos, enquanto para nós, os objetos nos são dados.
O Idealismo Transcendental de Kant, ao distinguir fenômeno e noúmeno, estabelece os limites do conhecimento humano. Nosso conhecimento se restringe ao mundo fenomênico, ou seja, ao modo como as coisas nos aparecem. Não podemos, por exemplo, estender nossos juízos às coisas como são em si mesmas. Essa limitação é, paradoxalmente, o que garante a validade e a segurança do conhecimento científico dentro de seus próprios domínios.
Após a Analítica Transcendental (que estuda as condições do conhecimento possível), Kant avança para a Dialética Transcendental. Esta segunda parte da Lógica Transcendental constitui uma crítica ao uso "hiperfísico" do intelecto, buscando desvelar as aparências, ilusões e enganos que surgem quando tentamos ir além dos fenômenos.
Intelecto vs. Razão: É importante notar a distinção kantiana entre Intelecto (ou Entendimento) e Razão.
O Intelecto é a faculdade de julgar, de formar conceitos e organizar a experiência (as 12 categorias).
A Razão é a faculdade de silogizar, de pensar em conceitos e juízos puros, deduzindo conclusões particulares a partir de princípios supremos e incondicionados.
A Razão e o Incondicionado: A Razão, para Kant, é a faculdade do incondicionado. Ela se lança para além do físico, do condicionado, buscando o absoluto, o metafísico, fugindo do horizonte da experiência.
Limitação da Razão Teórica: Contudo, Kant é muito claro: a Razão não conhece objetos. Ela é uma "pura exigência do absoluto", mas é incapaz de atingi-lo pelo conhecimento. Quando a Razão tenta aplicar suas próprias ideias (como Deus, Alma, Mundo como Totalidade) para conhecer objetos além da experiência possível, ela cai em contradições insolúveis (antinomias) e paralogismos (raciocínios falhos), criando meras ilusões metafísicas.
Portanto, a Dialética Transcendental serve para nos advertir sobre os perigos de usar a Razão de forma especulativa para conhecer o mundo noumênico, reafirmando que nosso conhecimento seguro se restringe ao mundo dos fenômenos.
A comparação entre o Idealismo Transcendental de Kant e o idealismo de George Berkeley é um ponto crucial para entender as nuances da filosofia kantiana, frequentemente cobrado em exames. Embora Kant tenha criticado Berkeley, há pontos de aproximação importantes.
A Descoberta e Preeminência do Sujeito:
Tanto Kant quanto Berkeley (assim como Descartes antes deles) colocam o sujeito como o fundamento de todo o conhecimento. Ambos defendem a subjetividade, reconhecendo no sujeito uma atividade peculiar e essencial da qual depende, em última instância, o conhecimento do objeto.
Ambos sustentam que o mundo natural não possui existência independente de nossas representações ou percepções. Há uma preeminência do interno (consciência) sobre o externo (mundo).
Berkeley: O sujeito é a mente, espírito ou eu, um ser percipiente e ativo. Seu lema é "Esse est percipi" ("ser é ser percebido"). O objeto é passivo e sua existência depende do sujeito (humano ou divino).
Kant: O sujeito é a mente (Gemüt), ativo, com faculdades que possuem princípios a priori. O objeto é dado ao sujeito, não criado por ele, mas também destituído dos poderes mentais do sujeito. Seu mote é a Revolução Copernicana (o sujeito conhece, o objeto é conhecido).
Ambos concordam que objetos externos, se vistos sem relação ao sujeito, seriam ilusões, o que levaria ao ceticismo – algo que ambos refutam.
A Crítica ao Idealismo (como a doutrina do mundo externo ser uma ilusão):
Curiosamente, tanto Berkeley quanto Kant rejeitam que suas próprias filosofias levem à ideia de que o mundo externo é uma ilusão, apesar de terem sido acusados disso por seus críticos.
Berkeley: Para ele, "esse est percipi" significa que os objetos existem na medida em que são percebidos por uma mente, mas isso não implica que sejam ilusórios. Pelo contrário, a realidade dos objetos é garantida por uma mente divina (Deus), que os produz de forma sábia e boa.
Kant: Afirma que objetos externos nos são dados e afetam nossa sensibilidade, produzindo fenômenos que são reais, mesmo que não saibamos o que são em si mesmos.
A Acusação de Idealismo Dogmático e a Defesa do Realismo:
Apesar da semelhança em rejeitar o rótulo de "ilusionistas", Kant acusa explicitamente Berkeley de ser um "idealista dogmático". Kant argumenta que Berkeley declara o espaço e as coisas no espaço como "impossíveis em si mesmos e por isso mesmo também considera as coisas no espaço como simples ficções". Embora Berkeley negasse essa interpretação, Kant via sua filosofia como levando, por consequência, a essa conclusão.
Idealismo Transcendental (Kant): Em oposição ao que ele chama de idealismo dogmático, Kant propõe o seu Idealismo Transcendental, baseado em duas doutrinas:
(i) Idealidade Transcendental: O espaço e o tempo são inerentes à mente do sujeito (são as formas a priori da sensibilidade).
(ii) Realidade Empírica: Os objetos da experiência são conhecidos pelo sujeito como fenômenos no espaço e no tempo, e estes são reais, embora não sejam as coisas-em-si.
Argumentos para o Realismo:
Berkeley: O principal argumento para a realidade do mundo é de caráter teológico. Deus, como uma mente onipresente e benevolente, percebe e, portanto, garante a existência contínua e a realidade dos objetos sensíveis, que não seriam ilusões, mas sim criações divinas.
Kant: Utiliza argumentos epistemológicos e da imediaticidade. Ele defende que os objetos exteriores são dados de modo imediato aos sentidos humanos (não criados pela imaginação). Além disso, a possibilidade de construir leis universais e científicas sobre os objetos sensíveis (como na física) implica que estes são reais, ao contrário de objetos oníricos (de sonhos). Kant rejeita o argumento teológico de Berkeley para a realidade do mundo na esfera do conhecimento teórico, pois a existência de Deus não pode ser conhecida, apenas postulada na razão prática.
Kant se autodenomina um realista empírico (os conceitos de espaço e tempo referem-se a objetos empíricos) e se distingue do realismo transcendental (onde espaço e tempo seriam inerentes aos objetos em si, como em Leibniz e possivelmente Berkeley).
A Concepção do Espaço e do Tempo (CRUCIAL PARA CONCURSOS):
Ambos negam o caráter absoluto do espaço e do tempo (como em Newton), ou seja, a ideia de que seriam entidades independentes, auto-subsistentes, existindo fora do sujeito. No entanto, suas concepções de "espaço e tempo puros" divergem radicalmente.
Berkeley (Concepção Relativa e Empirista):
Para Berkeley, o espaço e o tempo são inerentes aos objetos e ideias.
Sua "pureza" está relacionada à sua dependência de objetos: o espaço puro depende da resistência de corpos para o movimento, e o tempo puro depende da sucessão de ideias na mente.
Não há um espaço ou tempo que existam separadamente dos objetos. Se os objetos e ideias são eliminados, o espaço e o tempo desaparecem junto.
Kant (Concepção Subjetiva e Transcendental):
Para Kant, o espaço e o tempo são formas puras a priori da sensibilidade, inerentes ao sujeito.
Eles são "puros" porque são dados antes de toda experiência e não são abstraídos dela.
A diferença fundamental: se os objetos (externos ou internos) forem eliminados, o espaço e o tempo continuam a subsistir na mente do sujeito, permanecendo intactos como "formas vazias".
Relevância para a Física Moderna (Einstein):
É um ponto de surpresa para muitos, mas a concepção relativa do espaço e do tempo de Berkeley (e Leibniz) se ajusta melhor aos resultados da física de Einstein (Teoria da Relatividade Geral) do que a de Kant.
Einstein critica a ideia de Newton de espaço e tempo absolutos, afirmando que o espaço-tempo não tem existência separada e independente dos objetos da realidade física. Para ele, o conceito de "espaço [e tempo] vazio" perde o significado.
Essa crítica de Einstein também atinge Kant, porque Kant defendia que o espaço e o tempo subsistem como formas puras na mente mesmo se os objetos forem eliminados. Einstein, assim como Berkeley e Leibniz, argumenta que nada resta ao se eliminarem os objetos.
Em última análise, Einstein sugere que as propriedades e relações do espaço e do tempo não são fixadas previamente para descrever os objetos (como Kant queria), mas, ao contrário, a natureza dos objetos determina as propriedades e relações do espaço e do tempo de modo indissociável. Há uma determinação recíproca entre objetos e espaço/tempo.
É natural ter algumas confusões ao se deparar com um filósofo tão complexo como Kant. Vamos esclarecer algumas das dúvidas mais comuns:
"Kant é cartesiano? A mente é uma 'cera passiva'?"
Não. Kant não volta ao cartesianismo no sentido de que a mente é uma cera passiva que apenas recebe ideias inatas ou cópias exatas da sensação. Pelo contrário, Kant enfatiza a atividade do sujeito na construção do conhecimento, através das formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e do entendimento (categorias).
"O noúmeno é simplesmente um objeto que ainda não foi percebido?"
Não. Essa é uma confusão comum. Um noúmeno não é algo que pode ser percebido no futuro, como um fóton antes de atingir o olho. O mundo fenomênico já inclui tudo o que é de possível experiência. O noúmeno, por definição, é um objeto que não pode ser experimentado por nós em si mesmo, abstrato das condições da nossa percepção.
"Kant exclui a experiência do conhecimento?"
Absolutamente não. Kant afirma claramente que o conhecimento se fundamenta na experiência, mas esta nunca se dá de maneira neutra. A experiência é crucial, pois é através da sensibilidade que os objetos "nos são dados". O que Kant argumenta é que a experiência não é a única fonte de validade do conhecimento universal e necessário. Na verdade, "intuições sem conceitos são cegas, e conceitos sem intuições são vazios", ou seja, ambos são indispensáveis.
"A razão kantiana conhece tudo, é ilimitada?"
Não. Um dos grandes objetivos da Crítica da Razão Pura é justamente estabelecer os limites da razão. Kant mostra que a razão humana é poderosa e legisladora para o conhecimento do mundo fenomênico, mas ela não pode ir além dos limites da experiência possível para conhecer objetos do mundo noumênico (como Deus, a alma, o mundo como totalidade metafísica). A Razão é a faculdade do "incondicionado", mas é incapaz de atingi-lo pelo conhecimento.
"O idealismo de Kant é igual ao de Berkeley?"
Não. Embora ambos sejam "idealistas" no sentido de dar preeminência ao sujeito e negar que o mundo exista de forma totalmente independente da mente (sem ser percebido por nenhuma mente), Kant classifica o idealismo de Berkeley como "dogmático" e o contrapõe ao seu "transcendental". As principais diferenças estão na natureza do espaço e do tempo (inerentes aos objetos para Berkeley vs. inerentes ao sujeito para Kant) e na garantia da realidade externa (Deus para Berkeley vs. as estruturas a priori da mente humana para Kant).
Para solidificar seu conhecimento e estar preparado para qualquer questão, revise os seguintes pontos essenciais do Idealismo Transcendental de Kant:
A Revolução Copernicana do Conhecimento: A ideia de que o objeto deve se conformar à mente do sujeito para ser conhecido, e não o contrário. Essa é a virada central de Kant.
A Possibilidade dos Juízos Sintéticos a priori: A questão fundamental de Kant. Esses juízos são a base do conhecimento científico universal e necessário, pois adicionam informação nova e são independentes da experiência particular.
A Distinção Fenômeno vs. Noúmeno (Coisa-em-si):
Fenômeno: O mundo como ele nos aparece, moldado pelas nossas faculdades cognitivas (sensibilidade e entendimento). É o campo do conhecimento possível e seguro.
Noúmeno (Coisa-em-si): O mundo como ele é em si mesmo, independente da nossa mente. Não pode ser conhecido, apenas pensado, e marca os limites da nossa cognição teórica.
As Formas Puras da Sensibilidade: Espaço e Tempo: São as intuições puras a priori, estruturas inatas da nossa mente que nos permitem organizar as sensações. Não são qualidades dos objetos em si, mas condições para que possamos percebê-los.
As Categorias do Entendimento: São os conceitos puros a priori, estruturas inatas da nossa mente (12 no total) que nos permitem pensar e organizar os fenômenos em conceitos e juízos. Exemplos incluem Causalidade, Substância, etc.
A Função da Razão (e seus limites): Na Crítica da Razão Pura, a Razão (em sentido mais estrito) é a faculdade que busca o incondicionado e o absoluto (Deus, Alma, Mundo). Contudo, quando a Razão tenta conhecer esses objetos metafísicos além dos limites da experiência, ela cai em ilusões e contradições.
Diferenças Chave com Berkeley:
Inerência do Espaço e Tempo: Para Kant, são inerentes ao sujeito. Para Berkeley, são inerentes aos objetos/ideias e desaparecem sem eles.
Realidade Externa: Kant a garante pela estrutura da nossa mente e a possibilidade de leis científicas. Berkeley a garante por meio de Deus.
Classificação: Kant critica Berkeley como um "idealista dogmático", enquanto ele mesmo propõe o "idealismo transcendental".
Impacto na Física: A concepção de espaço e tempo de Berkeley e Leibniz, onde eles desaparecem sem objetos, surpreendentemente se alinha mais com a Teoria da Relatividade Geral de Einstein do que a de Kant, que defendia sua persistência como "formas vazias" na mente.
O projeto filosófico de Immanuel Kant marcou profundamente a modernidade e continua a influenciar o pensamento contemporâneo. Atento aos desafios científicos e filosóficos de sua época, Kant legou à posteridade uma teoria do conhecimento sistemática que serviu de base para a ciência moderna.
Sua Revolução Copernicana estabeleceu o sujeito transcendental como o ponto central do processo cognitivo, demonstrando que não somos meros "receptáculos passivos" de informações, mas agentes ativos que moldam a realidade que conhecemos.
A percepção de Kant de que a razão humana tem seus limites foi fundamental. Sua teoria foi uma tentativa monumental de levar a filosofia para além do "mero tatear" especulativo, fundamentando o conhecimento em princípios a priori que garantem sua segurança e universalidade no domínio dos fenômenos.
Entender o Idealismo Transcendental não é apenas compreender uma teoria filosófica; é desvendar como o ser humano pode conhecer e qual o papel da mente na construção da nossa realidade. Este guia buscou fornecer a você as ferramentas mais completas e didáticas para essa jornada.