O Neorrealismo, um movimento artístico e ideológico de meados do século XX, revolucionou diversas formas de expressão, como o cinema, a literatura e a pintura, ao propor uma nova maneira de olhar e retratar a realidade. Com um caráter marcadamente de esquerda e influências marxistas, ele se diferencia do Realismo do século XIX por seu compromisso com a denúncia de problemas sociais e a busca por transformação.
O Neorrealismo pode ser entendido como um movimento artístico do século XX, caracterizado por sua forte carga ideológica e social. Ele se apresenta como um "novo realismo", comprometido com a denúncia de problemas sociais e a promoção de uma reflexão crítica sobre a realidade.
Este movimento surgiu em um período de profundas transformações e desafios globais. A partir dos anos 1940, e de forma mais acentuada após a Segunda Guerra Mundial, começaram a surgir movimentos artísticos que buscavam uma relação mais livre com a linguagem e, simultaneamente, discutiam temas sociais. A Itália pós-guerra foi o berço do Neorrealismo cinematográfico, um dos primeiros e mais influentes desses movimentos. O país estava devastado pela guerra, e a sociedade enfrentava condições de vida extremamente difíceis, com desespero, opressão e desigualdade.
Em Portugal, o movimento neorrealista eclodiu nos anos 1930 como uma movimentação cultural de jovens atentos e sensíveis a um cenário mundial de crise econômica, desemprego, fome, difusão de regimes totalitários (Nazismo, Fascismo, Salazarismo) e a deflagração da Segunda Guerra Mundial. Em Portugal, a ditadura salazarista, conhecida como Estado Novo, marcou uma concepção antiparlamentar e antiliberal do Estado. Diante desse cenário, a geração neorrealista em Portugal buscou promover, através da ideologia marxista, um ato de resistência e luta contra a alienação provocada pelo regime do Estado Novo. Eles viam a arte como um meio de conscientização e transformação da realidade.
De forma genérica, o Neorrealismo se distingue por um conjunto de características que permeiam suas manifestações nas diversas artes:
Crítica Sociopolítica: É um pilar fundamental. As obras neorrealistas não são neutras; elas tomam partido, denunciando as desigualdades sociais e os desmandos das elites. Elas buscam explicar fenômenos humanos pelo social.
Ausência de Idealizações: Ao contrário de representações romantizadas, o Neorrealismo busca retratar a vida "como ela é na vida real", sem filtros ou embelezamentos. Há uma busca por uma abordagem crua que beira o documental.
Linguagem Simples e Coloquial: As narrativas se valem de uma linguagem direta e acessível, frequentemente espelhando o modo de falar do povo. No cinema, isso se traduz em diálogos improvisados e naturalistas.
Caráter Emotivo: Apesar da crueza, as obras neorrealistas são carregadas de emoção, valorizando os sentimentos dos personagens em detrimento de ideias abstratas.
Reflexão Social: O movimento se propõe a uma reflexão profunda sobre os problemas coletivos da humanidade, como desemprego, fome e guerras. A arte é vista como uma forma de consciência social.
Protagonismo de Pessoas do Povo: O foco recai sobre o cidadão comum, o trabalhador, o marginalizado, o oprimido. Suas vidas cotidianas e suas lutas pela sobrevivência tornam-se o centro da narrativa.
Denúncia de Injustiças Sociais: A exposição das mazelas da sociedade, da exploração e da miséria é uma constante. O Neorrealismo pretende desnudar os mecanismos socioeconômicos que regem a vida humana, incitando à transformação radical.
Essa é uma das dúvidas mais comuns e importantes para compreender o Neorrealismo. Embora ambos os termos remetam a uma representação da realidade, suas abordagens, contextos e propósitos são distintos:
Realismo (Século XIX):
Contexto: Reação ao Classicismo e ao Romantismo. Marcou o triunfo do interesse das classes médias em ascensão pela realidade empírica e pela vida cotidiana.
Propósito: Tratava a representação da vida real como um fim artístico em si. Buscava uma objetividade e neutralidade, como em uma "fotografia da realidade".
Foco: Embora retratasse a vida humana, mesmo a da nobreza, não necessariamente questionava as estruturas sociais ou seu impacto nas classes trabalhadoras.
Estilo: Tendeu a ser "anti-poético" e menos "estilizado", focando na crueza da vida real, doenças, e morte.
Visão: Partia do pressuposto ingênuo de que a realidade era um dado imediato dos sentidos.
Neorrealismo (Século XX):
Contexto: Movimento pós-Segunda Guerra Mundial, especialmente na Itália, e um movimento sociocultural-político em Portugal nos anos 30. Reação ao Modernismo, que foi visto como afastado demais da realidade e incapaz de registrar as recentes tragédias da guerra e a situação econômica.
Propósito: Trata a vida real como um meio para algum outro fim artístico, que é a transformação social. Sua intenção é ser ativo, não apenas contemplativo ou descritivo. A arte deve dar uma visão social da realidade, explicando as características naturais pela história, vida social, lutas de interesse.
Foco Ideológico: Tende a codificar uma perspectiva política mais específica, como o marxismo e o socialismo. Preocupa-se em compreender as causas estruturais dos problemas (pobreza, sexismo, alienação). Está mais próximo do Naturalismo (ramo do Realismo do século XIX) em termos de comentário social e denúncia.
Visão: Admite que a verdadeira realidade é uma interpretação racional imposta aos dados sensoriais. Busca uma transformação do Homem e o projeta para um futuro de colheita dos frutos dessa transformação. Acredita na transformação pela via da ação e na união de esforços coletivos.
A "Redução do Artístico ao Ideológico": Embora o Neorrealismo não pressuponha a separação entre forma e conteúdo, e nem um "rigor político" óbvio nas obras, a ênfase no conteúdo e na urgência de transmiti-lo levou críticos a associar o movimento à "redução do artístico ao ideológico". No entanto, defensores do movimento afirmavam que a literatura não é apenas política ou sociologia, mas toda obra literária, voluntária ou não, expressa uma posição política e social.
Em resumo, enquanto o Realismo buscava representar a realidade de forma objetiva, o Neorrealismo, embora se valendo de técnicas de representação realistas, tinha um propósito ideológico e de intervenção social muito mais explícito e engajado. É a diferença entre uma fotografia e um sistema de ideias.
O cinema foi, sem dúvida, a forma de arte onde o Neorrealismo atingiu seu expoente máximo e maior reconhecimento internacional.
O Neorrealismo Italiano é o movimento cinematográfico mais icônico da corrente neorrealista. Ele despontou a partir dos anos 1940, mas ganhou força e popularidade internacional após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a queda de Benito Mussolini em 1945.
Origens e o "Cinema dos Telefones Brancos":
O movimento surgiu em um contexto onde o principal estúdio italiano, a Cinecittà, havia sido bombardeado.
Os filmes que dominavam a indústria italiana nos anos 1930 eram chamados de telefoni bianchi ("telefone branco"). Essas produções, que imitavam comédias americanas, apresentavam cenários luxuosos e personagens burgueses com dilemas tolos, distantes da realidade do cidadão comum.
Um grupo de críticos da revista Cinema (incluindo Luchino Visconti, Cesare Zavattini, Giuseppe De Santis) atacava esses filmes, buscando inspiração em escritores realistas do século XX. Eles acreditavam que o cinema italiano deveria retratar a realidade social pós-guerra, a mudança de mentalidade dos italianos e suas condições de vida, como o desespero e a desigualdade.
Técnicas e Estéticas que Quebraram Paradigmas:
Para capturar as histórias da população mais humilde, os cineastas foram para as ruas, usando locações reais e externas, em vez de cenários de estúdio.
Utilizavam iluminação natural e o mínimo de equipamentos.
Frequentemente empregavam atores não profissionais, inclusive para papéis importantes, buscando uma maior autenticidade e aproximando-se do público. Quando atores profissionais eram usados, eles frequentemente interpretavam papéis muito diferentes dos habituais e contracenavam com amadores.
As histórias evitavam narrativas convencionais e optavam por estruturas mais abertas, que se desenvolviam organicamente. O enredo muitas vezes valorizava o fato corriqueiro como alicerce dramatúrgico.
O estilo visual era quase documental, com cinematografia granulada. O teórico André Bazin o chamou de "reportagem reconstituída", pois os cineastas buscavam respeitar ao máximo a realidade, resistindo à manipulação das imagens.
Os diálogos eram frequentemente improvisados, soando como conversas reais.
Os filmes neorrealistas muitas vezes apresentavam crianças como protagonistas ou observadores, indicando seu papel como testemunhas das dificuldades do presente e como chave para um futuro melhor.
Filmes Essenciais e Cineastas Marcantes (Muito Cobrados em Concursos!):
Precursores: Embora o movimento tenha se popularizado após a guerra, Alessandro Blasetti com O Coração Manda (1942) e o francês Jean Renoir com Toni (1935) são considerados importantes precursores. Luchino Visconti e Michelangelo Antonioni trabalharam com Renoir.
Obsessão (1943) – Luchino Visconti: Considerado por alguns teóricos como o marco inicial do movimento. Retrata a vida de um casal marginalizado e explora locações e paisagens como elementos expressivos vitais para o drama. Visconti já revelava uma Itália com aspectos pobres e insignificantes.
A Trilogia da Guerra de Roberto Rossellini: Um conjunto de três filmes que são o auge criativo e marcos do Neorrealismo.
Roma, Cidade Aberta (1945): Lançado logo após a libertação de Roma, é amplamente considerado o marco do Neorrealismo italiano e o primeiro grande filme produzido na Itália pós-guerra. Venceu o Grande Prêmio no Festival de Cannes. O filme trata dos efeitos da Segunda Guerra Mundial na Europa, assimilando a devastação física e o estado psicológico e social dos personagens. Roma não é apenas pano de fundo, mas personagem, com ruas e edificações em ruínas. Subverte convenções narrativas, mostrando a banalidade da morte em tempos de guerra.
Paisà (1946): Continua a explorar os efeitos da guerra e a devastação na Europa.
Alemanha, Ano Zero (1948): Um retrato pungente da Berlim pós-guerra, com uma criança como protagonista, mostrando a caótica situação e a valorização da presença infantil no movimento.
Vítimas da Tormenta (Shoeshine) (1946) – Vittorio De Sica: História de dois garotos engraxates em Roma que sonham em comprar um cavalo, acabando em uma prisão para crianças infratoras. De Sica explora a interação entre personagens e o espaço impessoal e decadente.
Ladrões de Bicicleta (1948) – Vittorio De Sica: Talvez o filme mais icônico do movimento. Apesar do enredo simples (um trabalhador busca sua bicicleta roubada ao lado do filho), explora o individualismo e a desolação no contexto do pós-guerra na Itália. De Sica usou intensamente atores não profissionais, incluindo crianças em papéis de destaque. O filme é estruturado de maneira episódica, valorizando o fato corriqueiro.
A Terra Treme (1948) – Luchino Visconti: Filmado com cidadãos da costa da Sicília e no dialeto da região, conta a história de um jovem pescador explorado. Adota uma abordagem crua, quase documental.
Arroz Amargo (1949) – Giuseppe De Santis: Busca equilibrar a preocupação social com uma abordagem cinematográfica mais comercial, evidenciando as condições insalubres dos trabalhadores, mas utilizando apelos de gêneros como o romance e o policial.
Stromboli, Terra de Deus (1950) – Roberto Rossellini: Com Ingrid Bergman, aborda a dificuldade de adaptação a um novo ambiente e conflitos com a população local.
Dois Vinténs de Esperança (1952) – Renato Castellani: Se adequa a uma vertente mais leve e comercial do movimento, chamada por alguns teóricos de "neorrealismo rosa". Apesar da premissa dramática, a abordagem é menos pessimista e flerta com a comédia.
Umberto D. (1952) – Vittorio De Sica: Aborda a condição dos idosos e a decadência de um aposentado que luta para manter sua dignidade.
O Declínio e o Legado Duradouro:
O movimento neorrealista italiano declinou rapidamente nos anos 1950. A população, desmoralizada pela visão da pobreza e do desespero nos filmes, ansiava por mudança e prosperidade, preferindo o otimismo e entretenimento dos filmes norte-americanos.
A opinião do governo italiano também não era favorável; Giulio Andreotti, então vice-ministro, declarou que o Neorrealismo era "roupa suja que não deveria ser lavada e pendurada para secar em público".
Apesar de sua curta duração na Itália, o impacto do Neorrealismo foi enorme e duradouro, sendo considerado o ponto de partida para o cinema moderno como um todo.
Ele influenciou uma "onda de insurreição anti-hollywoodiana" que ficou conhecida como os Novos Cinemas, incluindo:
Nouvelle Vague francesa (anos 1950).
Cinema Novo brasileiro (anos 1960).
Cinema Livre na Inglaterra.
Escola de Cinema Polonesa.
Cinema Paralelo Indiano.
Diretores contemporâneos como Jules Dassin, Ken Loach, Mike Leigh, Jia Zhangke e Martin Scorsese são considerados devedores do Neorrealismo.
Uma segunda geração de cineastas italianos nos anos 1960 e 1970, como Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Paolo e Vittorio Taviani, Marco Bellocchio e Ermanno Olmi, retomou características neorrealistas (filmes em preto e branco, fotografia documental, atores não profissionais, locações reais, temas sociais), agregando lições da Nouvelle Vague.
Federico Fellini e Michelangelo Antonioni, embora desenvolvendo estilos próprios, trabalharam questões caras ao Neorrealismo em seus primeiros filmes. Fellini entendia o fundamento do Neorrealismo como "olhar a realidade com um olho honesto", abordando a condição humana e sua luta em meio às adversidades. Antonioni explorou a passividade e a paralisia dos personagens diante do imprevisível, focando em espaços vazios e tempos mortos.
Anterior ao Neorrealismo italiano, o Realismo Poético Francês também abandonou o caráter individualista do cinema de autor, valorizando o trabalho em equipe (especialmente roteiristas vindos da literatura e do jornalismo). Influenciado pela Frente Popular (1936), explorava histórias de pessoas marginalizadas (classe operária, delinquentes) em um ambiente cético e pessimista. O Atalante (Jean Vigo) é um marco, e Jean Renoir é um nome importante do movimento.
Em Portugal, embora o Neorrealismo literário tenha sido muito importante, o cinema neorrealista não frutificou devido à forte censura salazarista.
O Cinema Novo brasileiro, que eclodiu nos anos 1960, é o resultado mais proeminente da influência do Neorrealismo italiano na cinematografia brasileira.
Contexto e Primeiras Manifestações:
A recepção do cinema neorrealista italiano no Brasil começou em 1947, com filmes como Il Bandito e Roma, Cidade Aberta. A crítica brasileira, tanto conservadora quanto engajada, saudou o movimento, destacando seu aspecto humanista.
Críticos como Alex Viany e aspirantes a cineastas como Nelson Pereira dos Santos viram no modelo de produção neorrealista (fazer cinema com poucos recursos, fora dos estúdios, com foco no homem e sua realidade) o ideal para o Brasil, um país em desenvolvimento. Nelson Pereira dos Santos afirmou que "no Brasil o pós-guerra é permanente", comparando a realidade do subdesenvolvimento à devastação pós-guerra na Itália.
Esse modelo de "cinema com nada ou quase nada e em condições adversas, usando como armas criatividade e simplicidade" inspirou o que Ismail Xavier chamou de "pré-Neo-realismo" ou "proto-Cinema Novo" nos anos 1950, com filmes de Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e Roberto Santos.
Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos são os principais nomes do Cinema Novo. Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955) é frequentemente citado como o possível início desse estilo cinematográfico no Brasil.
Análise de Influências em Filmes-Chave (Muito Relevante para Concursos!): Uma análise aprofundada de filmes da primeira fase do Cinema Novo revela a presença clara e definida de traços e vestígios da influência neorrealista. Esta influência não foi uma mera cópia, mas uma assimilação "antropofágica", onde os elementos foram incorporados e reelaborados na realidade brasileira.
Barravento (1960-1961) – Glauber Rocha:
Surpreendentemente, este filme de estreia de Glauber Rocha (que se tornaria um gênio do cinema brasileiro) mostra fortes traços do Neorrealismo de Visconti, especialmente de A Terra Treme.
Pode ser visto como um "quase remake" ou "atualização" da obra de Visconti, com uma história e tipo de protagonista análogos (um líder de comunidade de pescadores), um mesmo conflito econômico e social (luta de classes) e uma mensagem praticamente idêntica sobre a necessária revolta para uma nova consciência e transformação do homem e da sociedade.
Há um respeito pela ordem narrativa e uma preocupação com a complexa sincronia entre roteiro, filmagem e montagem. O uso de fala regional e dialeto (africano em Barravento e siciliano em La Terra Trema) é um ponto de conexão.
Vidas Secas (1962-1963) – Nelson Pereira dos Santos:
Este filme exibe um olhar neorrealista "gritante" desde o início, com textos de apresentação da obra antes da narrativa, uma característica comum em filmes neorrealistas.
A influência de Vittorio De Sica é marcante, especialmente de Sciuscià e Ladrões de Bicicleta, nas tomadas que mostram as crianças em relação aos animais e ao mundo adulto. As crianças são apresentadas como as principais vítimas e testemunhas do horror da miséria e da fome, ou de um "pós-guerra permanente".
O filme explora a dialética entre mundo adulto/infantil, História/Natureza e sonho/realidade.
Porto das Caixas (1962-1963) – Paulo César Saraceni:
Saraceni, declarado discípulo de Rossellini, mostra uma influência profunda e autônoma.
O filme pode ser visto como um "inteiro ponto morto", levando ao limite a técnica rosselliniana de trabalhar os "pontos mortos" ou "tempos de montagem", dilatando esses momentos para registrar o "fluxo do tempo" ou "fluxo do real", privilegiando o olhar sobre a realidade em detrimento da ação.
A protagonista se inspira nos retratos de mulher de Rossellini, como em Stromboli Terra di Dio. Temas como a decadência, o ritmo "canto-chão" da narrativa, a presença de crianças perdidas e o misticismo/religiosidade (com referências a procissões e comícios) remetem a filmes como Viaggio in Itália e Stromboli.
O Desafio (1964-1965) – Paulo César Saraceni:
Continua a diluição da narrativa observada em Porto das Caixas, aplicando-se a um estado de espírito do personagem e não a um drama evoluído e acabado.
As citações e práticas rossellinianas são evidentes, tanto em detalhes quanto em sequências inteiras. A viagem de um casal em crise e a visita da protagonista a uma fábrica têxtil são reelaborações de cenas de Viaggio in Itália.
Destacam-se como traços neorrealistas a "atualidade do tema", a "instantaneidade", a "improvisação" como técnica de filmagem, a câmera documental que insere a realidade de modo orgânico, e a construção do confronto de dois mundos (burguês vs. intelectuais de esquerda).
Tanto O Desafio quanto Viaggio in Itália são vistos como filmes de transição, marcando um novo marco e, para alguns, o fim do movimento.
"O travelling é um ato moral": Essa frase, atribuída a Jean-Luc Godard e defendida por Glauber Rocha, resume bem a ética da estética do Neorrealismo e do Cinema Novo: a forma da filmagem é inseparável de seu valor moral e da busca pela verdade. Roberto Rossellini já havia afirmado em 1952 que "o Neorrealismo é a forma artística da Verdade".
O Neorrealismo também teve importantes ramificações na literatura, especialmente em Portugal e no Brasil. Ele resgatou valores do realismo e naturalismo do século XIX, mas com forte influência do modernismo, do marxismo e da psicanálise freudiana.
As Bases Teóricas e a Luta de Classes:
A literatura neorrealista manteve o determinismo social e psicológico do naturalismo, a analogia entre o homem e o "bicho", e a busca por objetividade e neutralidade na narração.
No entanto, ao contrário do pessimismo do naturalismo, os escritores neorrealistas eram ativistas políticos e leitores de Marx, engajados na luta de classes, denunciando desigualdades e desmandos das elites.
Eles traçaram uma constante ligação entre a arte e os fenômenos históricos, o que explica o caráter essencialmente coletivista e a proposta de uma relação de solidariedade.
A influência de Mário Dionísio, importante ensaísta e teórico do Neorrealismo, é notável. Ele enfatizava a espontaneidade do movimento, que nasceu da inquietação, generosidade e ingenuidade de jovens que buscavam criar uma literatura nova, capaz de desempenhar um papel inestimável na luta pela libertação do homem.
A intensa produção teórica do movimento, divulgada em periódicos como O Diabo, Sol Nascente e Vértice, foi crucial para a implantação e difusão das propostas neorrealistas, evidenciando uma sintonia com a vida política e cultural.
O Neorrealismo se opôs aos Modernismos de Orpheu e Presença em Portugal, que defendiam uma "arte autotélica" (arte pela arte) incompatível com qualquer ideologia. Para os neorrealistas, a literatura era uma forma de consciência social e valorizava a dimensão ideológica da criação literária.
A questão da linguagem era crucial, buscando-se saber se ela própria poderia ser revolucionária. Embora houvesse um compromisso em representar a história para conscientizar os homens, alguns artistas como Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado e Mário Dionísio, buscavam o aperfeiçoamento da linguagem e a melhor forma de representação do real.
Neorrealismo em Portugal: O Início de uma Geração:
A literatura neorrealista portuguesa, de caráter ideológico e social, teve início no final da década de 1930.
Foi inaugurada em 1939 com a publicação do romance Gaibéus, de Alves Redol. A epígrafe do romance, que afirmava não pretender ser uma obra de arte, mas um "documentário humano", gerou polêmica sobre a prioridade do conteúdo sobre a forma, um traço polêmico no movimento.
Outras obras literárias portuguesas neorrealistas incluem:
Terra (1941), de Fernando Namora.
Sol de Agosto (1941), de João José Cochofel.
Alcateia (1944) e Uma Abelha na Chuva (1959), de Carlos de Oliveira.
Caminheiros (1949), de José Cardoso Pires.
Seara de Vento (1958), de Manuel da Fonseca.
O movimento teve que conviver com a censura salazarista, que atingiu principalmente o cinema e o teatro.
Neorrealismo no Brasil: O Romance de 30:
A literatura neorrealista brasileira surge dentro do movimento modernista, especificamente associada ao romance de 1930.
Esse romance é também regionalista e mostra a realidade social de determinadas regiões do Brasil. Possui caráter determinista, apontando o meio em que vivem os personagens como uma das principais causas de sua miséria.
Algumas obras literárias neorrealistas brasileiras são:
O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz.
Os Ratos (1935), de Dyonélio Machado.
Capitães da Areia (1937), de Jorge Amado.
Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos.
Neorrealismo na Itália e França: Outras Vertentes:
A literatura neorrealista italiana fez oposição ao fascismo e possui elementos sociais e existenciais. Obras notáveis incluem:
Conversa na Sicília (1941), de Elio Vittorini.
A Trilha dos Ninhos de Aranha (1947), de Italo Calvino.
É Isto um Homem? (1947), de Primo Levi.
O Cárcere (1948), de Cesare Pavese.
No Neorrealismo francês, a presença na literatura foi tímida. O romance Antoine Bloyé (1933), associado a um "realismo socialista", é o que mais se aproxima.
O Neorrealismo marcou as propostas de pintura com pendor social nos anos 1930 e 1940, ligadas à denúncia de questões sociais e ao fervor revolucionário comunista.
Artistas e Obras Notáveis:
México: Pintores como Orozco e Rivera exaltaram o povo mexicano e suas origens pré-colombianas, valorizando a luta pela liberdade e a construção do progresso do país em grandes murais figurativos.
Brasil: O maior nome da pintura neorrealista brasileira é Candido Portinari (1903-1962), cuja obra Café (1935) teve grande influência sobre a arte neorrealista portuguesa. Outras obras de Portinari com temática social incluem:
O Lavrador de Café (1934).
Lavadeiras (1937).
Retirantes (1944).
Itália: A pintura neorrealista italiana retratou o homem do campo e imagens de resistência política. O principal artista é Renato Guttuso (1911-1987), com obras como:
Atirando no Campo (1938).
Fuga do Etna (1940).
Massacre (1943).
Portugal: Exemplos de obras incluem:
Apertado pela Fome (1945), de Marcelino Vespeira.
Gadanheiro (1945), de Júlio Pomar.
França: O principal nome é André Fougeron (1913-1998) e sua obra Parisienses no Mercado (1947).
É crucial entender que o termo "Neorrealismo" também existe no contexto das Relações Internacionais, mas não tem nenhuma relação com o movimento artístico. Este é um ponto que causa muita confusão, mas é simples de desambiguar.
O que é o Neorrealismo (ou Realismo Estrutural):
É uma teoria das Relações Internacionais, descrita primeiramente por Kenneth Waltz em seu livro de 1979, Theory of International Politics.
Junto com o neoliberalismo, é uma das abordagens mais influentes nas teorias de Relações Internacionais.
Ao contrário do realismo clássico, o neorrealismo descarta conceitos essencialistas como a "natureza humana" para explicar a política internacional.
Os pensadores neorrealistas acreditam que restrições estruturais — e não a estratégia, o egoísmo ou a motivação dos estados — irão determinar o comportamento dos Estados nas relações internacionais.
A natureza da estrutura internacional é definida por seu princípio de primeira ordem: a anarquia (ausência de uma autoridade central formal) e pela distribuição de recursos (medida pelo número de grandes potências no sistema internacional).
Os Estados agem de acordo com a lógica da autoajuda, buscando seus próprios interesses em detrimento dos outros.
O objetivo mínimo dos Estados é garantir sua própria sobrevivência, o que é um pré-requisito para perseguir outros objetivos. Isso leva os Estados a desenvolverem recursos militares para aumentar seu poder relativo.
A "dilema de segurança" surge da incerteza sobre as intenções futuras de outros Estados e da falta de confiança, obrigando os Estados a se protegerem contra perdas relativas de poder.
Os Estados buscam um "equilíbrio de poder" por meio de balanceamento interno (aumento de capacidades econômicas e militares) ou externo (formação de alianças).
Os neorrealistas afirmam que um sistema bipolar é mais estável (menos propenso a guerras entre grandes potências) do que um multipolar, devido a menores chances de erros de cálculo.
Principais Conceitos e Diferenças com o Neoliberalismo (Muito Relevante para Concursos!): Existe um extenso debate entre as escolas neorrealista e neoliberal. As principais diferenças são:
Limitação da Anarquia: Neorrealistas veem a anarquia como mais limitante para a atuação do Estado do que os neoliberais.
Cooperação Internacional: Neorrealistas consideram a cooperação internacional muito mais difícil de ser alcançada e mantida, dependendo mais do poder do Estado.
Ganhos da Cooperação: Neoliberais enfatizam os ganhos absolutos (maximizar o nível total de ganhos para todas as partes), enquanto neorrealistas focam nos ganhos relativos (quem ganhará mais com a cooperação).
Foco Temático: Neorrealistas se preocupam com questões de segurança e as causas/efeitos das guerras. Neoliberais se concentram na economia política internacional e no meio ambiente.
Capacidades vs. Intenções: Neorrealistas priorizam as capacidades (poder) dos Estados antes de suas intenções. Neoliberais dão mais atenção às intenções e percepções.
Instituições Internacionais: Neorrealistas não acreditam que instituições internacionais ou regimes possam mitigar os efeitos limitadores da anarquia na cooperação. Neoliberais, sim, acreditam que regimes e instituições podem facilitar a cooperação.
Neorrealistas Notáveis (Relações Internacionais):
Kenneth Waltz (fundador).
John Mearsheimer (realismo ofensivo).
Robert J. Art.
Richard K. Betts.
Joseph Grieco.
Robert Jervis.
Christopher Layne.
Para solidificar seu conhecimento e se preparar para exames, considere os seguintes pontos:
Diferença Fundamental Neorrealismo (Arte) vs. Realismo (Arte): O Neorrealismo é o Realismo do século XX, com uma carga ideológica e social muito mais explícita e um objetivo de transformação. Ele não apenas retrata a realidade, mas a questiona e busca mudá-la, usando a arte como ferramenta de conscientização.
Neorrealismo (Arte) vs. Neorrealismo (Relações Internacionais): São conceitos completamente distintos, com origens, propósitos e teóricos diferentes. Não confunda!
Onde o Neorrealismo se Destacou: Principalmente no cinema italiano pós-Segunda Guerra Mundial, e na literatura portuguesa e brasileira do século XX.
Características Essenciais do Cinema Neorrealista Italiano:
Filmagens em locações reais (ruas, interiores, paisagens devastadas).
Uso de atores não profissionais (o povo comum).
Temas sociais: pobreza, desemprego, miséria, opressão, as consequências da guerra na vida do cidadão comum.
Estilo quase documental, com pouca maquiagem ou artifícios.
Narrativas abertas e episódicas, sem grandes clímax hollywoodianos.
Crianças como personagens centrais (testemunhas da realidade).
Filmes e Diretores Imprescindíveis (Concursos!):
Roberto Rossellini: Roma, Cidade Aberta (o marco!), Paisà, Alemanha, Ano Zero (Trilogia da Guerra).
Vittorio De Sica: Ladrões de Bicicleta (o mais icônico!), Vítimas da Tormenta (Shoeshine), Umberto D.
Luchino Visconti: Obsessão (pré-neorrealista, mas influente), A Terra Treme.
Giuseppe De Santis: Arroz Amargo.
Renato Castellani: Dois Vinténs de Esperança (o "neorrealismo rosa").
Legado do Neorrealismo (Arte): Influenciou uma série de "Novos Cinemas" ao redor do mundo, como a Nouvelle Vague francesa e o Cinema Novo brasileiro, estabelecendo as bases do cinema moderno.
Influência no Cinema Novo Brasileiro: Destaque para a "ética da estética", o modo de produção com poucos recursos, o foco no "pós-guerra permanente" do subdesenvolvimento, e a "assimilação antropofágica" da estética neorrealista em filmes como Barravento, Vidas Secas, Porto das Caixas e O Desafio.
Literatura Neorrealista: Em Portugal, Alves Redol com Gaibéus. No Brasil, o Romance de 30 (Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos).
O Neorrealismo, em suas múltiplas manifestações, representou uma verdadeira revolução no olhar artístico. Ao se recusar a desviar os olhos da realidade crua e das injustiças sociais, e ao buscar uma conexão profunda com o homem comum e seus dilemas, o movimento não apenas criou obras de arte impactantes, mas também abriu caminho para uma nova forma de fazer e pensar a arte.
Sua capacidade de assimilar e, ao mesmo tempo, transcender as realidades locais, adaptando-se a diferentes contextos culturais (como no Brasil, com o Cinema Novo), demonstra sua universalidade e relevância duradoura. O Neorrealismo não foi apenas um estilo, mas uma filosofia moral e ética que buscou libertar a arte de confinamentos, tornando-se um símbolo de liberdade recém-descoberta e da vontade de questionar e contestar a realidade.
Mesmo com a passagem do tempo, a essência do Neorrealismo – a busca pela verdade e a representação da condição humana em sua luta contra as adversidades – continua a inspirar e a provocar reflexão, reafirmando seu lugar como um dos movimentos mais significativos e influentes da história da arte e do pensamento contemporâneo.