A Intertextualidade é um fenômeno central na linguagem humana e na produção de sentido. Ela demonstra que nenhum texto existe em isolamento. A literatura, em particular, integra o circuito da cultura universal, correspondendo-se continuamente com outras obras e manifestações culturais.
A Intertextualidade é a presença textual de elementos semânticos e/ou formais que se referem a outros textos produzidos anteriormente. É a relação que um texto estabelece com outros textos, o que enriquece a interpretação e oferece múltiplas camadas de significado.
Em termos práticos, a intertextualidade é a formação do significado de um texto por outro texto. Ela pode se manifestar por meio de estratégias deliberadas de composição, como citação, alusão, plágio, tradução, pastiche ou paródia.
A intertextualidade é fundamental para a interpretação textual. Por meio dessa relação, ela permite:
Ampliação do sentido: cria novas possibilidades e desloca significados.
Finalidade comunicativa: pode ser utilizada para melhorar uma explicação, apresentar uma crítica, propor uma nova perspectiva ou produzir humor.
Revelação do Histórico Literário: o autor manifesta seu histórico literário e revela as obras que o ajudaram em sua formação e na composição daquele trabalho específico.
Enriquecimento da Leitura: o autor estabelece conexões com outras obras, enriquecendo o significado e a compreensão do texto presente pelo contexto de textos anteriores.
No contexto da intertextualidade, a palavra "texto" não se restringe apenas a escritos literários. Ela abrange qualquer forma de comunicação que possa ser interpretada, incluindo:
Imagens (pinturas, fotografias, releituras visuais).
Filmes e séries de TV (referências a obras clássicas, cenas icônicas ou universos ficcionais).
Músicas e composições (citar outras canções ou usar fragmentos - sample).
Eventos culturais.
A maneira como a referência a um texto-fonte é apresentada determina se a intertextualidade é explícita ou implícita. Esta é uma distinção muito cobrada em provas por testar a capacidade de reconhecimento do leitor.
A Intertextualidade Explícita é aquela que se expressa diretamente na superfície textual.
Geralmente, há uma citação clara da fonte original ou uma cópia de trechos.
Mesmo que o leitor não conheça o texto anterior, ele identificará que existe uma referência a outra produção.
Exemplos Notáveis: Citação (com aspas e indicação da fonte), Epígrafe, Tradução.
A Intertextualidade Implícita ocorre quando o texto referencia informações, conceitos e dados de textos anteriores, mas não utiliza cópias integrais nem indicação explícita.
Ela vem "disfarçada" pela linguagem do autor.
Caso o leitor não conheça o texto anterior, pode ter dificuldades em perceber a relação estabelecida.
Exemplos Notáveis: Alusão, Paráfrase (quando reescrita semelhança estrutural), Paródia (pois a crítica/ironia depende do conhecimento do original).
Existem diversos procedimentos intertextuais, mas alguns são mais frequentes e cruciais para a análise textual.
N°Tipo | Definição e Função | Exceção/Diferença | Chave |
3.1 | Citação | Transcrição de um trecho ou ideia de outro texto, geralmente marcada por aspas e indicação da autoria. É comum em trabalhos científicos (direta ou indireta). | Plágio (é a cópia indevida e não licenciada, sem dar crédito). |
3.2 | Paráfrase | Recriação de um texto já existente, reafirmando a mensagem original com novas palavras ou estruturas. O sentido original é mantido. | Diferença da Paródia (a paráfrase mantém o sentido do texto-fonte, a paródia o subverte). |
3.3 | Paródia | Forma de apropriação que rompe com o modelo retomado, subvertendo o sentido do texto-fonte. Apresenta forte teor crítico, cômico, satírico ou irônico. | Diferença do Pastiche (a paródia tem intenção crítica ou satírica, o pastiche não). |
3.4 | Alusão | Referência indireta ou insinuada a um texto anterior, sem aprofundamento. Pressupõe que o leitor reconheça a referência para plena compreensão. | É um modo de intertextualidade implícita, dependente da memória e cultura do leitor. |
3.5 | Epígrafe | Pequeno trecho de outra obra alocado no início de um novo texto, guardando com ele alguma relação mais ou menos oculta. É considerada um tipo de Paratexto. | Tem uma relação com o conteúdo que será desenvolvido, mas não faz parte do corpo principal do texto (diegético). |
3.6 | Pastiche | Imitação aberta do estilo de outros escritores, pintores ou músicos. Não visa o teor crítico ou satírico; é usado para homenagear ou explorar estilos. | É uma imitação do estilo (deformação), enquanto a paródia transforma uma obra para caricaturá-la. |
Bricolagem: Processo de "colagem" em que um texto é montado a partir de fragmentos de outros textos.
Tradução: Adequação de um texto em outra língua. É uma forma de recriação do texto-fonte. A tradução é crucial para a formação do cânone literário da cultura de chegada.
Crossover: Aparição ou encontro de personagens de universos fictícios diferentes.
Sample: Trechos pegos de outras músicas e utilizados como base para novas produções.
Transliteração: Técnica linguística que adapta termos, nomes e expressões de uma língua para outra, adaptando-os para um alfabeto diferente.
É crucial, especialmente em contextos acadêmicos e de concursos públicos, diferenciar a intertextualidade legítima do plágio.
O plágio é a cópia e/ou alteração indevida e não-licenciada de uma obra artística, científica ou literária por alguém que afirma ser o autor original. É a apropriação indevida da obra alheia sem dar o devido crédito, constituindo uma prática ilegal e antiética.
Regra de Ouro: Se uma citação não apresentar a fonte, ela é considerada plágio.
A intertextualidade, ao contrário, dialoga com outros textos de forma explícita ou implícita, mas é um recurso literário legítimo.
O tradutor desempenha um papel ativo na mediação entre o texto-fonte e o leitor, o que o obriga a lidar com a rede intertextual estabelecida pelo autor.
Identificação do Intertexto: O tradutor precisa de uma vasta bagagem literária, cultural e histórica para identificar as marcas intertextuais do original.
Assimetria Cultural: Marcas intertextuais evidentes em uma cultura podem ser total ou parcialmente ignoradas em outra. Um exemplo é a centralidade da Bíblia na cultura anglo-americana (como a King James Version) versus a inserção do texto bíblico na cultura brasileira.
Estratégias de Mediação: Em casos de grandes distâncias culturais ou referências que ofereçam resistência à tradução, o tradutor pode usar paratexto (como prefácios e notas) para explicar e decodificar as referências para o leitor-alvo. A omissão de referências intertextuais pode empobrecer a tradução.
Para aprofundar a análise e se destacar em provas de alto nível, é essencial compreender as relações da intertextualidade com conceitos teóricos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin e Gérard Genette.
O Dialogismo é um conceito desenvolvido pelos filósofos russos Mikhail Bakhtin e Valentin Volóchinov.
Definição: Para Bakhtin, o dialogismo é uma propriedade inerente à linguagem humana e a todos os enunciados (acontecimentos de linguagem, como fala, discurso, carta). Todo enunciado pressupõe a existência de outras vozes com as quais interage, seja concordando, discordando ou complementando.
Alcance: O dialogismo não se restringe ao diálogo face a face; ocorre em todo enunciado no processo de comunicação. Mesmo em um monólogo, há vozes que dialogam.
Relações Dialógicas: São relações entre índices sociais de valores que constituem o enunciado, compreendido como unidade da interação social.
Dialogismo não deve ser confundido com intertextualidade. O conceito bakhtiniano é mais amplo.
Característica | Dialogismo (Interdiscursividade) | Intertextualidade |
Objeto de Relação | Ocorre entre enunciados (unidade de sentido, posição assumida, possibilidade de réplica). | Refere-se apenas às relações dialógicas materializadas em textos. |
Materialidade | É inerente à linguagem, mesmo que o discurso do outro não seja mostrado no texto. | Exige a co-presença de um texto em outro texto. |
Implicação | Toda intertextualidade implica a existência de uma interdiscursividade (relação entre enunciados), mas nem toda interdiscursividade implica intertextualidade. | É um tipo de Dialogismo materializado. |
Gerard Genette (2006) propôs o conceito de Transtextualidade para definir o que coloca um texto em relação, explícita ou secreta, com outros textos. A intertextualidade, para Genette, é apenas o primeiro dos cinco tipos de transtextualidade.
Intertextualidade: A co-presença de um texto em outro texto.
Paratextualidade (Paratexto): Elementos que orbitam o texto e o apresentam ao leitor, como título, subtítulo, prefácio, e epígrafe.
Metatextualidade: Relação de comentário que une um texto ao texto do qual se fala (o texto comenta ou critica outro).
Hipertextualidade: Qualquer relação que une um texto B (hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto), e essa união não pode ser estabelecida por meio de um comentário. Exemplos incluem paródia e pastiche.
Arquitextualidade: Relação que determina o estatuto genérico do texto (o gênero ou modo literário, como conto, romance, dramático ou lírico).
O Dialogismo é um conceito mais amplo e associado à linguística; a Polifonia está mais relacionada à teoria literária.
Polifonia (em Bakhtin) não significa apenas um universo de muitas vozes, mas um universo onde todas as vozes são equipolentes (têm o mesmo valor), sem que nenhuma se sobreponha às demais.
As relações dialógicas integram a polifonia, mas não coincidem com ela. A polifonia depende da amplitude das ideias em discussão.
Em exames e concursos, a capacidade de identificar e interpretar a função do intertexto é frequentemente testada.
Para identificar a intertextualidade, é necessário:
Estar atento a referências a outras obras, personagens, situações ou estilos que remetam a textos anteriores.
Ativar o conhecimento prévio sobre diversos textos e autores.
Usar a memória, a cultura, a inventividade interpretativa e o espírito lúdico.
Os intertextos não são meros adornos; eles desempenham funções cruciais na concepção de um texto. Tiphaine Samoyault elenca quatro funções principais:
Auxiliar na constituição de um espaço e tempo específicos da narrativa.
Contribuir para a construção da espessura das personagens, conferindo-lhes maior densidade.
Estruturar a linguagem empregada tanto pelas personagens quanto pelo narrador.
Promover a ampliação do universo ficcional.
A análise de como os autores empregam referências textuais é fundamental:
Relação com a Bíblia: Em obras como A Sentimental Journey de Laurence Sterne, o diálogo com o texto bíblico é notório. Sterne utiliza tanto adaptações (releitura de trechos, como em 2Sm 12, 3) quanto alusões (referência a passagens, como 2Co 11, 23-27). No caso de Sterne, o uso incorreto e ultrajante de textos bíblicos levou à censura de sua obra.
Construção de Personagem por Leitura: Em "Venha ver o pôr do sol" (Lygia Fagundes Telles), a menção a A dama das Camélias associa a personagem Raquel à personagem Marguerite, revelando que, embora Raquel possa ser vista como interesseira, a referência estabelece uma oposição, mostrando Marguerite como generosa.
Crítica Social via Referência: No conto "Linda, uma história horrível" (Caio Fernando Abreu), a epígrafe da canção de Cazuza, "Só as mães são felizes", oferece uma conotação pessimista que introduz a temática da incomunicabilidade e instabilidade emocional das personagens. A manchete de jornal "País mergulha no caos, na doença e na miséria" (usada para tampar uma janela quebrada) introduz o contexto histórico social dos anos 80, remetendo à crise financeira e, implicitamente, à marginalização social associada a doenças como a AIDS, sugerida pelos sintomas do filho.
Na era digital, a Hipertextualidade é uma forma de intertextualidade que se manifesta através de links e referências entre conteúdos digitais.
Isso amplia o acesso a relações intertextuais e permite uma forma dinâmica e não linear de leitura e interpretação.
A intertextualidade é um recurso poderoso no discurso publicitário e na comunicação persuasiva.
Ao utilizar personagens ou cenários de obras literárias famosas, a publicidade pode criar uma ponte entre o texto atual e a obra referenciada.
Invocando a autoridade ou a emoção associada à obra original, ela influencia a recepção do público e cria uma associação positiva na mente dos consumidores.
A eficácia da persuasão depende se o público-alvo reconhece a referência e se a adaptação respeita o espírito da obra original.
A intertextualidade dialoga com a noção de "morte do autor" (Barthes) ao postular que o significado de um texto é construído na relação entre textos, e não apenas na intenção isolada do autor original. Isso valoriza o papel ativo do leitor na criação de significado.
A capacidade de reconhecer e interpretar referências intertextuais é, portanto, uma habilidade valiosa em nossa cultura altamente referencial e conectada.