Gil Vicente, dramaturgo e poeta, é amplamente considerado o pai do teatro português. Ele esteve ativo durante as primeiras três décadas do século XVI, período que coincide com o auge do poderio imperialista de Portugal.
A vida de Gil Vicente foi marcada pela sua posição na corte. Ele era um artista da corte, passando toda a sua carreira sob a proteção da "rainha velha", Dona Leonor, e se dizendo a serviço do monarca. O reconhecimento de seu vasto legado, contudo, só se consolidou tardiamente, a partir do século XIX.
Um dos conceitos mais importantes sobre Gil Vicente para concursos é o de "dramaturgo do entrelugar". Ele viveu e escreveu na transição da Idade Média para o Renascimento (Idade Moderna).
Gil Vicente transitava entre esses dois mundos, mas seu teatro preserva uma visão de mundo predominantemente medieval e conservadora, embora utilize formas inovadoras do Renascimento.
Visão Medieval (Teocentrismo) | Visão Renascentista (Humanismo) |
Teocentrismo: Deus como centro das preocupações humanas. | Antropocentrismo: Começa a predominar o homem como centro do universo, valorizando a racionalidade e a individualidade. |
Moralidade: Forte preocupação com a salvação da alma e os valores cristãos. | Crítica à Ambição: Vicente critica a ganância e ambição dos novos tempos, resultantes do desenvolvimento comercial e do expansionismo. |
Defesa da Ordem: Defesa intransigente da ordem social estamental (cada um no seu lugar). | Avanço Dramático: Inovação ao criar uma obra vasta e diversa (mais de 50 peças) e dar voz às classes populares. |
Ele era, portanto, um moralista que protestava contra a rápida transformação social e a perda dos valores tradicionais, vendo um caos desorganizador nos novos tempos.
O teatro de Gil Vicente é caracterizado por uma rica polifonia (diversidade de vozes) e pelo seu duplo objetivo: divertir e educar/moralizar.
O teatro vicentino é essencialmente moral e social. A crítica é feroz e bombardeia todos os setores da sociedade, sendo o riso a principal ferramenta de correção.
Máxima Central: Ridendo castigat mores: (Rindo, castiga-se os costumes). Gil Vicente denuncia os vícios e as fraquezas humanas através do riso.
Crítica Direcionada: A crítica incide sobre a conduta dos indivíduos, não poupando ricos ou pobres. No entanto, ele poupava as instituições (como a Igreja e o Judiciário), criticando apenas a hipocrisia e a má conduta dos seus membros (como o Frade ou o Corregedor).
As personagens vicentinas são, em sua maioria, personagens-tipo (ou alegóricas).
Tipos Sociais: Elas não possuem características psicológicas particulares; servem como modelos para satirizar determinada classe socioprofissional ou traço social (ex: o Onzeneiro representa a Usura).
Realismo Linguístico: Gil Vicente utiliza uma linguagem rica e variada, que reflete a condição sociocultural da personagem. Ele reproduz as diversas variedades linguísticas (falares populares, da corte, o latim macarrônico).
Uso do Espanhol: Cerca de um terço da sua obra foi escrita em espanhol. Isso se deve ao fato de a corte ser bilíngue (a rainha Leonor era castelhana) e o espanhol ser visto como uma língua de maior tradição para a literatura na época. Nos Autos das Barcas, personagens mais elevados (papa, imperador, rei) comunicam-se em espanhol.
O Auto da Barca do Inferno (ou Auto da Moralidade) é o trabalho mais famoso de Gil Vicente e a peça que mais se destaca. É a primeira parte da Trilogia das Barcas, seguida pelo Auto da Barca do Purgatório e Auto da Barca da Glória.
Embora se aproxime da farsa, a peça é classificada como uma complexa alegoria dramática ou moralidade.
Tema Central: O julgamento das almas após a morte.
Estrutura Externa: O auto não é dividido em atos ou cenas. Para fins de leitura, é dividido em "cenas" a cada nova personagem que entra.
Estrutura Interna (Miniações): É composta por um conjunto de miniações semelhantes à volta de um ou mais protagonistas. Cada "julgamento" segue um padrão: Exposição (apresentação da personagem), Conflito (julgamento pelo Anjo/Diabo) e Desenlace (sentença).
O cenário é um porto imaginário, um braço de mar (o rio Letes, o rio da morte), onde duas barcas estão ancoradas.
Barca do Inferno: Conduzida pelo Diabo e seu Companheiro. O Diabo é o juiz, zombeteiro, irônico e o bom argumentador. Ele é a personagem mais importante na crítica que Gil Vicente tece à sua época.
Barca da Glória (Céu): Tripulada pelo Anjo (o arrais celeste). O Anjo é geralmente calado e sério.
O percurso padrão dos condenados é: chegam, dirigem-se primeiro à Barca do Inferno (mais enfeitada), percebem o destino, vão à Barca da Glória e, sendo rejeitados, voltam e embarcam na Barca do Inferno.
Todas as personagens (exceto as fixas) trazem consigo símbolos cênicos que representam seus pecados e sua vida terrena.
Personagem-Tipo | Classe/Profissão | Símbolo Cênico (A Carga) | Pecado/Vício e Crítica | Sentença |
Fidalgo (D. Anrique) | Nobreza Ociosa | Manto, Pajem e Cadeira de Espaldas. | Tirania, Orgulho, Presunção, Luxúria. Condenado por ter vivido a seu prazer. É a crítica à nobreza arrogante. | Condenado. |
Onzeneiro | Agiota/Usurário | Bolsão. | Ganância, Usura, Apego ao Dinheiro. Tenta voltar à Terra para reaver riquezas. | Condenado. |
Sapateiro | Mestre de Ofício | Avental e Formas de Sapateiro. | Exploração, Desonestidade. Condenado pela hipocrisia: roubava os clientes logo após confessar e comungar. | Condenado. |
Frade (Frei Babriel) | Clero (Maus Sacerdotes) | Moça (Florença), Espada, Escudo, Capacete. | Vida Mundana, Dissolução de Costumes, Falso Moralismo. (A crítica vicentina ao clero que não prega paz, verdade e fé). | Condenado. |
Brísida Vaz | Alcoviteira/Feiticeira | Hímens Postiços, Arcas de Feitiços, Jóias de seduzir. | Prostituição, Exploração, Falta de Escrupulos. Condenada por ser agenciadora de meretrizes e feiticeira. | Condenada. |
Corregedor e Procurador | Justiça (Magistratura) | Processos, Vara da Justiça, Livros. | Corrupção. Manipulavam a justiça com subornos (como perdizes). Falam em latim que o Parvo parodia. | Condenados. |
Judeu (Semifará) | Usurário | Bode. | Rejeição à fé cristã. O Diabo recusa-se a levar o bode. Ele não pode sequer entrar na barca; vai "à toa" (dentro d'água, amarrado). (Representa o forte antissemitismo da época). | Condenado (à toa). |
Enforcado | Vil e Corruptível | Baraço ao pescoço. | Condenado, pois a morte terrena (forca) não garantiu a remissão dos pecados divinos. | Condenado. |
Em uma obra de moralidade onde quase todos são condenados, as exceções são cruciais para entender os valores defendidos por Gil Vicente.
O Parvo (Joane):
Qualidade: Representa a inocência e a ingenuidade. É um homem tolo e rude, mas de coração bom, desprovido de bens materiais.
Destino e Função: É um dos poucos a não ser condenado. Embora o Anjo o convide a entrar, ele permanece no cais, numa espécie de Purgatório. Sua função principal é animar a cena e funcionar como a segunda voz de Gil Vicente. Por sua simplicidade, ele pode insultar o Diabo com linguagem chula e ironizar os outros condenados.
Conclusão em Concursos: O Parvo é a única personagem do povo que, por sua simplicidade e falta de malícia, é salva (ou pelo menos absolvida da danação eterna).
Os Quatro Cavaleiros Cruzados:
Qualidade: Trazem a Cruz de Cristo. Morreram a combater pela fé cristã contra os Mouros, em uma Cruzada.
Destino: Com uma "folha de serviço impecável", são absolvidos da culpa e conduzidos à Barca da Glória.
O riso vicentino é planejado e serve ao propósito moralizante. Gil Vicente utiliza três tipos principais de cômico:
Cômico de Caráter: Baseado na personalidade e no comportamento da personagem, que suscita o riso. Exemplo: A pobreza de espírito do Parvo, que não mede suas palavras, ou a arrogância do Fidalgo.
Cômico de Situação: Criado pela inadaptação das personagens às circunstâncias em que se encontram. Exemplo: O Fidalgo sendo ridicularizado pelo Diabo e tendo seu orgulho pisado, ou o Onzeneiro lamentando que o dinheiro ficou em terra.
Cômico de Linguagem: Uso de recursos verbais que provocam o riso. Exemplo: As falas irônicas do Diabo ou a paródia em latim feita pelo Parvo ao Corregedor ("rapinastis coelhorum et pernis perdigotorum").
A sátira de Gil Vicente é uma crítica global ao conjunto social, focada em desequilíbrios e vícios, especialmente a ganância e a presunção.
A crítica à Justiça é um tema recorrente e muito cobrado. No Auto da Barca do Inferno, o Corregedor e o Procurador são condenados por aceitarem suborno e manipularem sentenças. A índole moralizadora do teatro vicentino é patente na condenação desses representantes do Direito.
Exceção em outras peças (Exemplo: Farsa do Juiz da Beira): Nesta farsa, o juiz Pero Marques é um parvo e analfabeto, que profere sentenças absurdas. Gil Vicente, ao fazer isso, ridiculariza a Justiça portuguesa e critica o favoritismo na distribuição de cargos na Corte. A inversão de valores acontece quando o povo (como a alcoviteira Anna Dias ou o sapateiro judeu) passa a sentenciar o próprio juiz.
A censura de Gil Vicente nunca se dirige à Igreja Católica como instituição, mas sim à dissolução dos costumes do clero. O Frade no Auto da Barca do Inferno é um tipo caricato, dançarino, espadachim e namorador, que vive uma vida mundana, condenado por ser incapaz de pregar os preceitos mais simples da fé.
O dramaturgo critica ferozmente os representantes dos novos tempos: comerciantes e burgueses.
O Maior Pecado: Subir de vida a todo custo e o desejo por ambições materiais.
Expansionismo: Embora Gil Vicente não seja um propagandista claro, ele critica os maridos em peças como Auto da Índia e Farsa de Inês Pereira por cederem à ambição de fazer fortuna nas Índias ou em Marrocos, e por renunciarem às suas origens sociais e à ordem estamental.
A representação feminina em Gil Vicente é um ponto de análise complexo, pois, embora o discurso geral retrate o feminino sob a ótica masculina, ele oferece personagens de destaque.
A figura feminina recebe um papel ativo, de destaque, em primeiro plano. As personagens femininas possuem forte personalidade e dominam o espaço cênico.
Transgressão: A mulher, no teatro vicentino, muitas vezes viola as regras, representando o antimodelo da farsa, seja expressando a transgressão, seja reivindicando o direito à palavra ou à sexualidade livremente assumida.
Ilusão de Triunfo: Contudo, essa imagem "triunfal" é uma ilusão que só se concretiza no palco, pois, na sociedade da época, ela era considerada uma imagem degradante, perversa e adúltera (como a mulher adúltera ao lado do homem cornudo).
Brísida Vaz (Auto da Barca do Inferno): É a alcoviteira (cafetina). Sua condenação se dá pela devassidão e falta de escrúpulos, e ela é um exemplo de como o autor condena a feitiçaria e as superstições populares. Ela utiliza uma linguagem vulgar ao tentar convencer o Anjo, comparando-se a um apóstolo e vangloriando-se de ter prostituído mais moças do que Santa Úrsula converteu.
Farsa de Inês Pereira (Obra de Alta Cobrança): Esta peça aborda a figura feminina num mundo em transição. Inês Pereira representa a mulher que busca satisfação pessoal e um marido que "não a prendesse". A trama mostra seu dilema e a oposição entre os pretendentes: o Escudeiro Tomané (que a trai e morre) e o Parvo Pero Marques (o marido enganado da Beira).
Para além de Portugal, a dimensão de Gil Vicente é europeia. Seu legado é crucial na literatura lusófona, influenciando diretamente o teatro brasileiro e sendo um tópico frequentemente comparado em concursos.
A tradição de Gil Vicente perdurou e se manifesta claramente na obra de Ariano Suassuna (séc. XX), especialmente em O Auto da Compadecida e A Pena e a Lei.
Pontos de Contato:
Ambos utilizam o gênero Auto e Farsa.
Ambos exploram o tema do Juízo Final e a justiça divina (pois a justiça dos homens é falha).
Ambos criam tipos sociais caricatos e utilizam a comicidade para desnudar a sociedade e criticar a hipocrisia e a corrupção da elite (clero, justiça, ricos).
A figura do Pícaro/Trapaceiro (João Grilo em Suassuna, ou Benedito em A Pena e a Lei) desempenha um papel semelhante ao Parvo e ao Diabo vicentino: desvela a verdade e denuncia o que há de falso e criticável nos mais poderosos.
A maior diferença reside na visão da salvação.
Gil Vicente (Rigor): Mais próximo dos primórdios do cristianismo. O Diabo atua como juiz moral, castigando fidalgo, clérigo e alcoviteira, pois seus pecados não são dignos de perdão. A fé e a pobreza são exaltadas, e os vícios mundanos levam ao inferno.
Ariano Suassuna (Misericórdia): Apresenta uma visão mais flexível e humana da religião. A Compadecida (Nossa Senhora) atua como advogada da humanidade, intercedendo. A maioria dos pecadores de Suassuna (o padre, o sacristão, o padeiro) são enviados ao Purgatório, não ao Inferno, recebendo a misericórdia divina.
Esta seção aborda dúvidas comuns e reforça as áreas de maior incidência em provas.
P: Qual é o foco principal da crítica social de Gil Vicente? R: A crítica não é focada apenas em uma classe, mas tem caráter global. O foco central recai sobre os vícios humanos, especialmente a hipocrisia (religiosa e social) e o orgulho/presunção. Ele condena a perda dos valores tradicionais e o aumento da ambição material em Portugal.
P: Por que o Parvo (Joane) se salva no Auto da Barca do Inferno? R: O Parvo se salva (ou é absolvido) por sua inocência e ingenuidade, e por ser desprovido de bens materiais. Ele não agiu com maldade. Ele representa os valores sinceros e legítimos da alma pura, em contraste com a corrupção das elites.
P: Qual o papel do Diabo e do Anjo na peça? R: Ambos são personagens alegóricas que funcionam como juízes das almas. O Diabo, mais vigoroso e argumentador, tem o papel crucial de denunciar os vícios e as fraquezas dos condenados, atuando como a principal voz da crítica vicentina. O Anjo, por sua vez, representa o Bem e o Céu.
P: O que a "carga" das personagens simboliza? R: A carga (como a cadeira do Fidalgo, o bolsão do Onzeneiro, as formas do Sapateiro) simboliza os pecados cometidos em vida e o apego às coisas mundanas. A recusa do Anjo em aceitar essas "cargas inúteis" (como a tirania do Fidalgo ou os processos do Corregedor) demonstra que os valores terrenos não garantem a salvação no julgamento divino.
P: Gil Vicente defendia os judeus? R: O Auto da Barca do Inferno reflete o forte antissemitismo disseminado em Portugal na época. Embora o Diabo quase se recuse a levá-lo, o Judeu Semifará é condenado por não seguir os preceitos da fé cristã, refletindo o contexto de perseguição religiosa e a perseguição aos cristãos novos. Contudo, há fontes que indicam que Gil Vicente ora atacava, ora defendia, e que defendeu publicamente os cristãos novos em outros momentos.
P: O que significa o conceito de "mundo às avessas" no teatro vicentino? R: O conceito de mundo às avessas ocorre quando o riso subverte a ordem pré-estabelecida. Vemos uma inversão de papéis e hierarquias: o clérigo se transforma em namorador, o juiz (Pero Marques) em um parvo fora da lei. É justamente essa distorção que revela o que há de hipócrita e corrupto no tecido social.
P: A sátira de Gil Vicente era política? R: A crítica de Gil Vicente é primariamente moralista, e não política. Seu objetivo era denunciar a corrupção e os vícios para reconduzir a sociedade ao caminho do bem, defendendo a moral cristã e a ordem social estabelecida. No entanto, ao criticar membros do Judiciário (Corregedor) e do Clero (Frade), ele implicitamente atinge estruturas de poder.