A polifonia em Dostoiévski é um dos conceitos literários e filosóficos mais cobrados em concursos públicos e exames acadêmicos, representando um divisor de águas na história do romance moderno. Cunhada pelo teórico russo Mikhail Bakhtin (do Círculo "B.M.V"), a polifonia define a maneira única pela qual Fiódor Dostoiévski (1821-1881) organizava suas narrativas, dando vida a personagens que são sujeitos de suas próprias ideias.
Fiódor Dostoiévski é reconhecido por Mikhail Bakhtin (1895-1975) como o criador do romance polifônico moderno. A investigação de Bakhtin sobre a obra dostoievskiana resultou no livro "Problemas da Poética de Dostoiévski" (publicado originalmente em 1929).
A tese central de Bakhtin consiste em defender que a construção das personagens de Dostoiévski é excepcional na literatura moderna, pois propõe personalidades e vozes próprias a cada sujeito da narrativa.
A ideia de polifonia é, fundamentalmente, uma metáfora conceitual retirada da teoria e história da música.
Na teoria musical, a polifonia é um estilo criado na Idade Média, opondo-se ao canto monódico, no qual vozes se distinguem ritmicamente e melodicamente, permitindo que melodias diversas convivam no mesmo campo musical.
O próprio Dostoiévski, ao escrever sobre sua composição, fez uma analogia entre seu sistema construtivo e a teoria musical das "passagens" ou contraposições. Ele chegou a descrever uma de suas novelas como construída no contraponto artístico.
O crítico Leonid Gróssman (apud Bakhtin) destacava o caráter musical no estilo dostoievskiano a partir das categorias de contraponto e polifonia, observando que o "ponto contra ponto" (punctum contra punctum) representa vozes diferentes, cantando diversamente o mesmo tema.
Dostoiévski utiliza o discurso musical polifônico para expressar uma visão do homem inconcluso e inacabado.
Antes de entender a polifonia, é crucial dominar o dialogismo, o conceito mais abrangente e fundamental da filosofia bakhtiniana, pois ele é constitutivo da linguagem.
Constitutivo da Linguagem: O dialogismo é um princípio constitutivo da linguagem. Não existe linguagem que não seja dialógica; toda fala e todo texto são realizados por meio de relações dialógicas.
Corrente de Enunciados: Cada enunciado (fala ou texto) é um elo na corrente organizada de outros enunciados. O enunciado retoma vozes alheias ou próprias (passadas) e se volta para respostas futuras (próprias ou alheias).
Universalidade do Gênero: O dialogismo está presente em todos os textos, em todas as falas, e em todos os gêneros discursivos (conversas, filmes, e-mails, teses, notícias, etc.).
Natureza Ampla: As relações dialógicas são possíveis entre "outros fenômenos conscientizados desde que estes estejam expressos numa matéria sígnica".
A polifonia é o conceito que define a inovação estilística de Dostoiévski, sendo, por isso, um tema prioritário em provas de literatura russa.
A polifonia não é universal como o dialogismo; ela é um modo particular de Dostoiévski organizar e estruturar algumas de suas obras (romances).
No romance polifônico, as ideias dos heróis (personagens) são plenivalentes e estão em igualdade (equipolência) com o autor-criador. O autor age como regente de um coro de consciências que debatem ideias e pontos de vista.
A polifonia está intimamente ligada à visão inovadora de Dostoiévski sobre o homem.
Para o escritor russo, conforme a leitura bakhtiniana, o homem é um sujeito inconcluso e inacabado.
O romance polifônico é o palco onde:
O diálogo não é apenas um meio de revelação, mas a própria ação.
O homem não apenas se revela exteriormente, mas se torna, pela primeira vez, aquilo que é, não só para os outros, mas também para si mesmo.
"Ser significa co-municar-se pelo diálogo".
É uma dúvida comum e um assunto muito cobrado confundir dialogismo e polifonia. Lembre-se: polifonia é um caso especial de dialogismo.
Característica | Dialogismo | Polifonia |
Escopo | Princípio constitutivo da linguagem (Universal). | Modo particular de estruturação da obra (Específico). |
Presença | Em todos os textos, enunciados e falas. | Apenas em alguns textos e, para Bakhtin, primariamente no gênero romance de Dostoiévski. |
Relação | Toda linguagem é dialógica. Pode haver concordância ou discordância entre vozes. | Envolve debate de ideias conflitantes. É mais que isso; nem todo discurso dialógico é polifônico. |
Resultado | Não focado na conclusão do debate, mas na relação entre enunciados. | As ideias não são concluídas em uma palavra vencedora. |
ATENÇÃO: Para Bakhtin, a polifonia não está presente em todos os textos. A polifonia é uma característica da poética de Dostoiévski, e o filósofo russo afirmou que poucos discursos conseguem essa peculiaridade tão rica.
Esta seção detalha os elementos arquitetônicos que tornam o romance polifônico único, com foco nas categorias técnicas essenciais.
No início de "Problemas da Poética de Dostoiévski" (PPD), Bakhtin antecipa as três características essenciais que definem a polifonia de Dostoiévski:
Imiscibilidade (Independência): As vozes e consciências das personagens não se misturam, permanecendo separadas.
Equipolência (Igualdade): As vozes têm o mesmo estatuto e não estão subordinadas umas às outras, nem mesmo à voz do autor-criador.
Plenivalência (Plenitude de Valor): As ideias dos personagens possuem valor completo e independente.
No romance polifônico, o personagem deixa de ser um "puro objeto do agir do autor-criador para assumir o estatuto de outro sujeito".
Autoria Dialógica: A voz do autor-criador jamais "abafa a voz do outro". A voz do narrador pode ganhar espaço e equivaler a outras vozes na história, podendo o próprio narrador ser considerado um personagem.
A Ideia como Pedra de Toque: A ideia, embora ocupe uma posição imensa, não é a heroína; o herói é o homem. A ideia é a "pedra de toque para experimentar o homem no homem" ou o "médium" no qual a consciência humana desabrocha.
Inconclusibilidade Estrutural: A polifonia se manifesta no não acabamento do discurso. As vozes (ideias e pontos de vista) estão em constante embate valorativo.
Bakhtin demonstra que a dinâmica da composição artística de Dostoiévski obedece, em certa medida, à prática musical polifônica, especialmente a fuga.
A Fuga:
Caráter Imitativo: Ocorre a passagem do tema por muitas e diferentes vozes.
Monotemática: Trata-se de uma peça monotemática (o "sujeito") re-enunciada por diferentes vozes.
Vozes: Apresenta tipicamente 3 ou 4 vozes.
Forma Aberta: Possui um traço estilístico de contínua expansão.
Contraponto: A transposição da teoria da música sugere que "tudo na vida é diálogo, ou seja, contraposição dialógica".
Para uma análise completa, é fundamental saber onde a polifonia de Dostoiévski se manifesta de forma mais evidente e quais obras apresentam nuances importantes.
Em Dostoiévski, o diálogo não é apenas um meio ou um limiar da ação, mas a própria ação. O romance se instaura no plano da simultaneidade de acontecimentos. A totalidade dostoievskiana transforma a contradição entre diversas perspectivas no fundamento de iluminar problemas históricos.
Obras Notáveis e Personagens Bivocais:
O Duplo: Apresenta o diálogo interior de três vozes nos limites de uma consciência que se decompôs (Goliádkin).
O Adolescente: Contém a contraposição (contraponto) e a tensão dialógica das ideias.
Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios, Os Irmãos Karamazov: Personagens cruciais como Raskólnikov, Míchkin, Kirilóv, Ivan Karamazov e Sônia Marmieládova participam do concerto polifônico.
"Memórias do Subsolo" (1864) é crucial porque é considerada um divisor de águas na biografia e conteúdo intelectual de Dostoiévski. É nesta obra que aparecem as primeiras generalizações histórico-filosóficas e sociais que servirão de base para a evolução subsequente do autor.
Polifonia, Ceticismo e Bivocalidade em Memórias do Subsolo (Pergunta Obvia: Como a polifonia se manifesta em um monólogo?)
Apesar de ser um solilóquio, a fala do homem do subsolo é um diálogo sumamente tenso e um diálogo fantasmagórico.
Ceticismo Pirrônico (A Voz Cética): O protagonista utiliza modos de argumentação que se assemelham ao ceticismo pirrônico (como a redução ao absurdo e o regresso ao infinito) para recusar o dogmatismo das teorias racionalistas, como as de Tchernichévski.
O Combate ao Dogmatismo: O homem do subsolo recusa a ideia de reduzir a natureza humana a um aspecto uno e racional. O discurso cético identifica atitudes de recusa à fé na ciência e ao determinismo. Ele ironiza o "Palácio de Cristal" (símbolo do socialismo utópico).
Voz Bivocal e Dialógica Interior: O homem do subsolo está sempre "com sua própria voz a voz de outra pessoa". Ele se dirige a "senhores" imaginários (o público), antecipando e rebatendo suas críticas, o que torna sua fala um diálogo constante e tenso. O diálogo interno é uma "dialética determinista" que impulsiona a contradição.
Embora Bakhtin defenda a polifonia como uma característica de Dostoiévski, estudos semióticos mais recentes sustentam a gradação do conceito.
Totalidade A (Mais Polifônica): Obras como Crime e Castigo e Os Irmãos Karamázov apresentam traços mais polifônicos, com recorrência dos procedimentos de imiscibilidade, equipolência e interindependência de vozes.
Totalidade B (Menos Polifônica): Obras como Um Jogador (The Gambler) apresentam traços menos polifônicos. Nesses casos, a recorrência dos procedimentos centrais da polifonia é menor.
Isso responde à pergunta óbvia: A polifonia não é um estado binário (presente ou ausente), mas uma categoria apreensível e escalar na estética dostoievskiana.
Para concursos de alto nível, é crucial entender as críticas a Bakhtin e a distinção entre polifonia e monologismo, que Bakhtin utiliza como contraponto.
O romance monológico é aquele no qual as vozes das personagens estão subordinadas à voz do autor. O autor é a única voz dominante, e as personagens são figuras objetificadas, meros transmissores de suas ideias.
Características do Monologismo: Está associado ao autoritarismo e ao acabamento. O discurso monológico é "concluído e surdo à resposta do outro", coisificando a realidade.
Tolstói como Exemplo: Bakhtin usa Tolstói como contraponto para demonstrar que a polifonia não implica uma hierarquia valorativa. No romance monológico (ou dialogismo monofônico), as vozes são hierarquizadas, "abafadas" por uma voz reinante.
A tese da polifonia foi o ponto mais polêmico na recepção do livro de Bakhtin em 1929.
Acusações de Idealismo: O tom dominante da crítica soviética foi "desmascarar" a filosofia idealista de Bakhtin sob uma roupagem sociológica. Críticos como Gróssman-Róchin e Berkóvski rejeitaram a polifonia, alegando que se deveria ouvir uma "única voz de classe".
Ausência de Abordagem Histórica: A primeira edição (1929) foi criticada pela ausência de uma abordagem histórica. Bakhtin admitiu essa limitação.
Correção de Rota (Poética Histórica): Na segunda edição (1963), Bakhtin incluiu a poética histórica, rastreando as origens do romance polifônico até os diálogos socráticos e a sátira menipeia. O diálogo socrático, que busca a verdade e se contrapõe ao monologismo oficial, é considerado um dos princípios da linha evolutiva do romance, levando à obra de Dostoiévski.
Analogia Musical (Imprecisão): Alguns críticos acusaram Bakhtin de imprecisão por usar terminologia musical (polifonia) em vez de primar pela precisão científica.
Para dominar o conceito de Polifonia em Dostoiévski:
Conceito-Chave | Resumo Prático | Prioridade em Concursos |
Polifonia | Modo estrutural de Dostoiévski, baseado na metáfora musical, onde as vozes dos personagens coexistem em igualdade (equipolência) com o autor. | Alta. Definição, origem (Bakhtin) e contraste com monologismo. |
Dialogismo | Princípio constitutivo da linguagem; universal e presente em todos os gêneros. | Média/Alta. Essencial para o contraste com a polifonia (o específico vs. o universal). |
Arquitetura | Imiscibilidade, Equipolência, Plenivalência. Uso de Contraponto e Fuga (estrutura monotemática com múltiplas vozes). | Alta. Conhecer os termos técnicos musicais e as três características. |
Visão do Homem | O diálogo é a própria ação, revelando o homem inconcluso e inacabado. | Alta. Ligação Filosofia/Estética. |
Exceção | A polifonia é escalar; obras como Um Jogador são menos polifônicas que Os Irmãos Karamázov. | Média/Alta. Demonstra conhecimento aprofundado e nuances. |
Obras-Chave | Memórias do Subsolo como protoforma dialética, utilizando o ceticismo contra o dogmatismo utilitário de Tchernichévski. | Alta. Obra mais filosófica e concentrada. |