A obra de Joaquim Maria Machado de Assis (1839–1908), considerado pela crítica o maior escritor brasileiro, transcende o tempo, mantendo-se extremamente relevante do ponto de vista estético e temático no mundo contemporâneo.
Seja para compreender as raízes da sociedade brasileira, passar em concursos públicos ou simplesmente apreciar a alta literatura universal, ler Machado de Assis é fundamental:
Mestria na Ironia e Crítica Social: Machado utilizou a ironia como sua principal ferramenta para expor os vícios, contradições e hipocrisias da sociedade do século XIX, abordando temas como racismo, desigualdade de gênero, corrupção e a falta de ética.
Psicologia Humana Complexa: O autor inovou ao focar na realidade psicológica de seus personagens. Suas histórias exploram os dilemas morais, as motivações ocultas e a profundidade da mente humana.
Inovação Literária: Machado revolucionou a narrativa brasileira com um tom mais verossímil e um senso psicológico notável. Sua obra dialoga com a literatura moderna e universal, colocando o Brasil no cenário mundial já no século XIX.
Pergunta Frequente do Leitor: Vale a pena ler Memórias Póstumas de Brás Cubas?
Sim, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) é tido como um dos livros mais importantes não apenas da literatura brasileira, mas da literatura mundial, comparado a Dom Quixote. Leitores o descrevem como divertido, bem-humorado, e uma crítica social que denuncia problemas ainda atuais no Brasil. Embora possa ter um vocabulário mais rebuscado, a linguagem é amplamente acessível em grande parte.
A vasta obra machadiana é convencionalmente dividida em duas fases, sendo a segunda considerada superior e marcada pela força de sua originalidade. Essa divisão é um ponto crucial para o entendimento da evolução de seu estilo e dos temas abordados.
A primeira fase abrange os romances escritos antes de 1881.
Características: Embora apresente contornos românticos, já transparece a preocupação do autor com temas polêmicos. O Realismo Psicológico, a observação das personagens e o interesse como motor das relações já se manifestavam.
Enfoque Temático: Os enredos giram em torno da busca por ascensão social, dinheiro, família e casamento por interesse.
Objetivo: Narrativas com intenção de moralizar e divertir, ainda seguindo o padrão da narrativa folhetinesca de gosto burguês.
Obras Notáveis: Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878).
A segunda fase inicia-se em 1881 com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, considerada um divisor de águas.
Características: Machado se torna mais maduro, concentrando-se em problematizar os aspectos humanos. A ironia e a sutileza no tratamento das relações pessoais são marcantes.
Temas Centrais: Falsidade da vida, adultério, relações sociais, e comportamentos humanos complexos. Há uma reintegração abundante do temário liberal e moderno, das doutrinas sociais e científicas. O autor passa a analisar a sociedade sob o ângulo de quem está "instalado", revelando seus "horrores".
Obras-Primas da Maturidade (Muito Cobradas): Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).
O estilo de Machado de Assis é reconhecido por sua escrita sofisticada, linguagem elaborada e precisão cirúrgica.
Machado é um renovador por ter impresso à narrativa um senso psicológico notável. Seu Realismo é chamado de Realismo Psicológico porque a ação externa é subordinada a uma avaliação interna, realizada pelo narrador ou pela voz em terceira pessoa. Seus personagens são criados objetivamente, mas com uma vida interior intensa, explorando a complexidade do ser humano.
O autor utiliza uma técnica narrativa inovadora, empregando recursos como flashbacks e monólogos interiores. Em sua fase madura, ele cria o Narrador-Defunto (como em Memórias Póstumas), que é irônico, agressivamente arbitrário e indiferente. Esse narrador, por sua vez, subverte as expectativas do leitor, conversando com ele, dizendo e desdizendo, numa constante volubilidade e capricho.
Para o crítico Roberto Schwarz, essa forma volúvel reflete a ordem burguesa da época, que era contraditória e não cumpria suas promessas. Para Ivan Teixeira, essa técnica revolucionária transforma a obra em uma antinarrativa ou romance poético.
A ironia é a principal arma de Machado. Através do humor ácido, ele critica a hipocrisia e a superficialidade.
Essa atitude de ironizar e ridicularizar (a galhofa) é crucial, inclusive, para a compreensão de seu suposto pessimismo (Ver seção 6). Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a comparação do método de narração do defunto-autor com o Pentateuco (os primeiros livros da Bíblia) é um exemplo claro de como a galhofa alcança até mesmo figuras de grande autoridade, revelando o cinismo do narrador.
Os três grandes romances da maturidade são frequentemente cobrados em provas por sua complexidade e profundidade na crítica social e psicológica.
Este romance inaugura o Realismo no Brasil e é um marco por ser narrado por um defunto-autor.
O Narrador: Brás Cubas conta sua história de vida a partir da morte. Sua retrospectiva é fria e distanciada.
O Emplasto Brás Cubas: O que causou sua morte foi a ideia grandiosa de inventar um emplasto (Emplasto Brás Cubas) para curar a melancolia. Embora ele mencionasse filantropia e lucro como vantagens, ele confessa que sua motivação principal era a "sede de nomeada" e o "gosto de ver impressas nos jornais... estas três palavras: Emplasto Brás Cubas". Ele tinha a "paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas," ou seja, o amor da glória.
A Derradeira Negativa: O último capítulo revela o negativismo e a amargura do defunto-autor. Brás Cubas lista suas falhas (não ter alcançado a celebridade do emplasto, não ter sido ministro, não ter conhecido o casamento), mas conclui que seu pequeno saldo positivo foi a "derradeira negativa": "não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".
Famoso pela ambiguidade e pelo tema do ciúme e da traição.
A Crítica Reversa: A intervenção da crítica americana Helen Caldwell (autora da primeira tradução do livro para o inglês em 1953) é crucial para a análise moderna. Ela inverteu a leitura tradicional, que imputava a culpa do adultério a Capitu, e pôs Bentinho (o narrador) no banco dos réus.
A Alma Exterior em Capitu: O romance ilustra bem a noção de alma exterior, como na observação de Bentinho sobre Capitu que, ao passar pelo espelho, "concertou os cabelos tão demoradamente que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela era muito amiga de si" (o olhar voltado para o Eu/narcisismo). Outro exemplo é a necessidade de Capitu de mostrar os "sinais exteriores do novo estado" (casada) para o "resto do mundo também," buscando confirmação e inveja.
A Humilhação Social: O personagem Pádua, pai de Capitu, sente-se humilhado pela perda do cargo de Administrador interino, o que o faz sentir-se tão mal que desejava a morte. Ele só se recupera emocionalmente usando o título em retrospecto, no que o narrador chama de "sabor póstumo das glórias interinas".
Continuação indireta de Memórias Póstumas e foco na loucura e na filosofia.
O Humanitismo: O romance apresenta o filósofo excêntrico Quincas Borba, criador da teoria do Humanitismo. Essa doutrina é interpretada como uma paródia de ideias filosóficas e científicas da época, como a Mônada de Leibniz e o evolucionismo, que circulavam na sociedade do Segundo Reinado.
A Ascensão e a Loucura: A história de Rubião, um professor ingênuo que herda uma fortuna, serve de crítica contundente à sociedade. Os devaneios e delírios de Rubião, como sonhar com o título de Marquês de Barbacena e as pompas de um casamento imaginado com carruagens luxuosas, demonstram como o exterior passa a compor os desejos mais profundos do interior, reforçando a noção de alma exterior.
A noção de Alma Exterior é um dos conceitos mais profundos e recorrentes na obra de Machado, e sua compreensão é vital para uma análise completa, especialmente em exames de alto nível que buscam o diferencial crítico.
A Alma Exterior é uma noção que perpassa toda a obra machadiana.
Conceito: Indica a fundamental importância que o olhar do outro tem sobre o Eu (ego).
Componentes: Está relacionada a temas como ascensão social, hierarquia, títulos, aparência e status social.
Natureza Contraditória: O termo é paradoxal porque é ao mesmo tempo "alma" (psíquico ou subjetividade) e "exterior" (vinculada ao que no indivíduo pode ser visto, avaliado ou admirado pelos outros).
Sinônimos Críticos: É também chamada de "segunda natureza" ou "instância do social", contrapondo-se à alma interior ou à força dos instintos.
Primazia do Social: Machado sugere que a alma exterior é dominante. Analisando a obra, críticos afirmam que "em caso de perigo a consideração pública, a alma exterior, terá primazia". A constituição da subjetividade não é abstrata, mas concretamente construída nas relações sociais.
O conto O espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana (1882) detalha essa noção.
A alma exterior é descrita como a grande repercussão entre familiares e amigos da nomeação do alferes (sub-oficial), sendo a farda sua representação física.
O que é intrigante é que, mesmo nos sonhos, o alferes se via fardado e elogiado, demonstrando que a alma exterior não é apenas o que está fora, mas o que passou a estar dentro, compondo os desejos e a própria subjetividade.
A noção de alma exterior guarda grande afinidade com conceitos freudianos.
Eu e Identificação: A formação do Eu implica a introjeção de objetos (como os pais e os valores sociais). O processo de identificação faz com que o objeto externo seja incorporado, deixando marcas no Eu. Se a alma exterior é contraditória (alma e exterior), é porque ela se forma nessa relação, onde objetos externos passam a fazer parte da subjetividade.
Ideal do Eu e Supereu: As primeiras identificações levam à gênese do Ideal do Eu (ou Supereu), que impõe ao Eu exigências conforme a escala de valores vigente na sociedade. A humilhação surge quando o Eu não corresponde a essas exigências, sendo a contrapartida do "amor da glória".
Exemplo: O sofrimento de Pádua ao perder o título de Administrador interino (Dom Casmurro) ilustra como o Ideal do Eu, impregnado pelos valores de status social, é ameaçado.
Narcisismo: O narcisismo (secundário) está intimamente relacionado à constituição do Eu. Machado de Assis chamou essa busca narcisista de "amor da glória". Os personagens machadianos são frequentemente descritos como narcisicamente atentos aos seus próprios interesses e voltados para as necessidades do amor-próprio.
Uma dúvida comum e um tema recorrente em provas de análise literária é se Machado de Assis era, de fato, pessimista e niilista.
Sílvio Romero, rival de Machado, foi um dos críticos responsáveis por atribuir-lhe a pecha de pessimista e niilista. O capítulo final de Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde o defunto-autor se orgulha de não ter tido filhos para não transmitir o "legado da nossa miséria", é frequentemente usado como prova cabal desse niilismo.
O niilismo, neste contexto, pode ser entendido como a negação sistemática de valores que prendem o homem à vida em sociedade — uma "vontade de nada".
A crítica moderna, no entanto, argumenta que o niilismo presente na obra é submetido à pena da galhofa do autor, ou seja, Machado ironiza esse niilismo.
Ironia do Narrador: Se narradores (como Brás Cubas e Bento Santiago) e personagens são niilistas, o escritor não o é necessariamente.
A Afirmação da Criação: Embora o defunto-autor negue a vida, o próprio ato de criar uma obra autobiográfica (o livro) é, ironicamente, uma afirmação da vida.
Resistência ao Abismo: Personagens como Brás Cubas, Bento Santiago e Aires utilizam a escrita (a arte) como uma forma de organizar a falta de sentido. Ao se converterem em artistas e criadores de valores, eles "não são niilistas".
O Combate Explícito: Machado combatia o Realismo/Naturalismo de sua época e negava que a realidade humana fosse apenas morbidez. Ele afirmava que "a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada".
Portanto, Machado utiliza o niilismo como um motor temático, mas o aborda com irreverência, deslocando os conceitos filosóficos e os apresentando como perspectivas a serem galhofadas, "matando o niilismo... pelo ridículo".
Embora os romances sejam mais estudados, os contos machadianos são de extrema importância por explorarem, de forma mais concisa, temas cruciais da sociedade brasileira e por darem voz a grupos sociais marginalizados, sendo essenciais para uma análise sociológica e muito cobrados em concursos.
Os contos de Machado de Assis apresentam uma visão crítica mesmo em obras anteriores à segunda fase.
Foco e Intensidade: O conto, por sua natureza concisa, deve criar interesse, ser intenso e provocar um efeito no leitor. Machado utiliza a técnica de sugerir o todo pelo fragmento e a emoção pela ironia (escrita elíptica e fragmentária), o que o torna moderno a seu modo.
As Duas Histórias (Iceberg): Sua técnica segue o princípio de que "um conto sempre conta duas histórias" (uma visível e uma secreta). A história visível é apenas um oitavo, e os outros sete oitavos (o segredo ou a crítica social profunda) estão escondidos, fortalecendo a estrutura.
Os contos frequentemente lidam com a violência e as relações envolvendo a escravidão, o patriarcalismo e o cientificismo. Eles destacam figuras que não teriam o mesmo tratamento nos romances, como crianças, escravos, agregados e mulheres.
Conto (Ano) | Temática Central e Relevância | Destaque em Concursos |
"Pai contra mãe" (1906) | Violência da escravidão e relações sociais no Segundo Império. | Alto (pela crítica social direta) |
"O alienista" (1882) | Crítica ao cientificismo e ao positivismo, e a crença cega em teorias científicas. | Alto (pela sátira e importância para o Realismo) |
"O espelho" (1882) | Detalhamento da teoria da Alma Exterior (subjetividade e social). | Alto (conceitual) |
"A causa secreta" (1896) | Exploração da maldade gratuita e do microrrealismo psicológico. | Alto |
"Missa do Galo" (1899) | Relações veladas, complexidade psicológica e adultério. | Médio/Alto |
"Uns braços" (1885) | Crítica sutil à arrogância e a primazia da alma exterior/aprovação social, mesmo em contextos de abuso (agregado). | Médio |
Contos anteriores à segunda fase, como "Virginius" (1864) e "Mariana" (1871), já apresentam a complexa confluência das categorias de raça e gênero na situação de violência experienciada pelas personagens. Essa constatação sugere que a visão crítica de Machado era presente mesmo em sua fase inicial.
A obra machadiana é intrinsecamente ligada ao contexto sócio-cultural do Segundo Reinado (sociedade fluminense). Machado viveu um momento de transição, onde a supremacia social dependia menos da posse de bens e mais da tradição, origem fidalga e educação.
A ascensão social e a busca por status eram temas centrais.
Mobilidade Social: Havia a possibilidade de mobilidade social (passar de rico a fidalgo). Personagens de Machado aspiram a um lugar ou a manter seu status.
O Agregado e a Dependência: A ideologia liberal (autonomia/liberdade) importada da Europa entrava em contradição com a realidade brasileira da escravidão. O que predominava eram as práticas de favor. A figura mais exemplar dessa dependência era o agregado. O próprio Machado pertencia à classe dos agregados em sua juventude.
Títulos e Aparência: Ter dinheiro não era suficiente; valia a proximidade com a Coroa, e os títulos, comendas e patentes (especialmente o de barão, conselheiros e comendadores) eram cruciais para a alma exterior, dando ao possuidor a convicção de "finalmente ser alguém". A necessidade de "mostrar" era fundamental, expressa, por exemplo, pelo luxo e pompa nas carruagens.
A observação e crítica de Machado possibilitam ver a relação permanente e dialética entre a sociedade e o indivíduo.
O indivíduo na sociedade machadiana buscava um lugar imaginado e uma identidade sonhada, temendo constantemente o anonimato. Essa ansiedade pela distinção, pela aparência perfeita e pelo sucesso, acompanhada do medo da vergonha e humilhação em caso de fracasso, reflete um sofrimento psíquico que se aproxima das questões da sociedade contemporânea (século XXI), marcada pelo culto às celebridades e ao narcisismo.
O personagem-narrador de Memórias Póstumas é descrito como imediatista, hedonista, e focado em si mesmo e nas necessidades de seu amor-próprio — características que, ironicamente, ressoam com o homem da atualidade.
Conceito Machadiano | O que é e por que é importante? | Obras-Chave |
Alma Exterior | O olhar do outro sobre o Eu, indicando a importância do status, títulos e aparência na constituição da subjetividade. O externo se torna interno (instância do social). | O Espelho, Dom Casmurro, Quincas Borba |
Narcisismo / Amor da Glória | O desejo profundo dos personagens (como Brás Cubas) de serem admirados e reconhecidos, muitas vezes pela vaidade e não pela filantropia. É o complemento libidinoso do egoísmo. | Memórias Póstumas (Emplasto), Dom Casmurro (Capitu) |
Ideal do Eu (Supereu) | Instância psíquica que vigia o Eu, incorporando as exigências e valores morais da sociedade. O fracasso em atingir o ideal leva à humilhação e sofrimento. | Dom Casmurro (Pádua), Quincas Borba (Rubião) |
Ironia e Galhofa | Principal técnica do autor para fazer crítica social. Ridiculariza o niilismo e a hipocrisia, estabelecendo um narrador não confiável. | Memórias Póstumas |
Humanitismo | Teoria filosófica criada por Quincas Borba, sendo uma paródia das doutrinas científicas e liberais do século XIX (evolucionismo). | Quincas Borba |
Fase Madura (Realista) | Início em 1881 com Memórias Póstumas. Foco na introspecção psicológica, nas contradições humanas e na crítica da sociedade do favor. | Memórias Póstumas, Dom Casmurro, Quincas Borba |