A prisão preventiva é uma medida cautelar de natureza processual, decretada pela autoridade judiciária competente, que restringe a liberdade de um indivíduo antes do trânsito em julgado de uma sentença condenatória. Diferentemente da pena, ela não possui caráter punitivo, mas sim instrumental, servindo para garantir o bom andamento da investigação policial ou do processo penal.
Esta medida representa a mais grave intervenção do poder estatal sobre a liberdade de um indivíduo antes de uma condenação definitiva. Ela ocorre mesmo que a culpabilidade, tipicidade e ilicitude do delito ainda não tenham sido provadas, operando sob a presunção de inocência [114 (1)]. Seu objetivo principal é assegurar que o processo criminal possa seguir seu curso sem interferências e que, ao final, a lei penal seja efetivamente aplicada [17, 114 (1), 240, 252].
Para que a prisão preventiva possa ser decretada, é indispensável a presença de dois requisitos fundamentais, conforme o Art. 312 do Código de Processo Penal (CPP):
Este requisito exige a prova da existência do crime (materialidade) e indícios suficientes de autoria ou participação do imputado [5, 32, 116 (1), 242, 243]. Não basta uma mera suspeita; é necessário que os elementos presentes nos autos indiquem de forma razoável que o crime ocorreu e que o investigado ou acusado provavelmente o cometeu.
O periculum libertatis é o verdadeiro fundamento da prisão preventiva e consiste no perigo que a liberdade do autor do fato representa para o processo e para a aplicação da lei penal. Este perigo deve ser concreto e justificar a restrição da liberdade para resguardar um dos objetivos da prisão preventiva, que serão detalhados a seguir.
O Art. 312 do CPP estabelece os motivos específicos que configuram o periculum libertatis e podem justificar a prisão preventiva [5, 116 (1), 243]:
Este é, sem dúvida, o fundamento mais controverso e criticado pela doutrina. O termo "ordem pública" é considerado ambíguo, vago, obscuro, subjetivo e excessivamente amplo, passível de diversas interpretações e manipulações.
Críticas e Inconstitucionalidade: A doutrina majoritária e o próprio artigo concluem pela inconstitucionalidade deste fundamento, pois ele afronta diretamente os princípios constitucionais da presunção de inocência e da legalidade estrita. A indefinição do conceito permite que magistrados fundamentem prisões com base em argumentos estranhos à natureza cautelar do processo.
Finalidades Alheias ao Processo: A prisão preventiva, sob este fundamento, muitas vezes serve a fins não cautelares, como garantir a paz social, assegurar a credibilidade das instituições, responder ao clamor público ou devido à periculosidade do réu. Tais "pseudofundamentos" desrespeitam a presunção de inocência e, em essência, transformam a medida cautelar em uma antecipação de pena ou em um instrumento de segurança pública.
Risco de Reiteração Criminosa: A fundamentação no risco de reiteração criminosa é vista como um "diagnóstico baseado em adivinhações sobre o futuro", não sendo admitida para justificar uma medida cautelar.
Similar à "garantia da ordem pública", este fundamento também é alvo de críticas por sua vaguidão e inconstitucionalidade. Sua imprecisão permite subjetivismos e "achismos" para justificar prisões que, de outra forma, seriam desnecessárias ou ilegais.
Este fundamento visa evitar que o acusado, em liberdade, prejudique a coleta de provas [243 (3), 252]. Isso inclui ações como destruição de evidências, coação ou intimidação de vítimas e testemunhas, ou suborno de agentes estatais. É uma das finalidades mais alinhadas ao caráter instrumental da prisão preventiva.
Este fundamento busca evitar a fuga do acusado, garantindo que ele não se evada da aplicação de uma eventual sentença condenatória [243 (4), 252]. A presença de risco de fuga justifica a medida para que a justiça não seja frustrada.
A Lei nº 12.403/11, que será abordada no item 6, estabeleceu um rol de medidas cautelares diversas da prisão. Caso o imputado descumpra qualquer das obrigações impostas por força dessas medidas, a prisão preventiva poderá ser decretada [116 (§ 1º), 117 (2), 243 (5)].
Este fundamento é específico para casos que envolvem violência doméstica e familiar. A prisão preventiva pode ser decretada para assegurar o cumprimento das medidas protetivas de urgência previstas, por exemplo, na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) [243 (5)].
Além dos requisitos e fundamentos, o Art. 313 do CPP estabelece as situações em que a prisão preventiva é admitida:
A prisão preventiva é cabível nos crimes dolosos (aqueles cometidos com intenção de violar o direito alheio) punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos [119 (I), 243 (1), 258]. Esta é a regra geral para a maioria dos delitos.
Será admitida se o imputado já tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvadas as disposições do Art. 64, inciso I, do Código Penal [120 (II), 243 (4)]. A reincidência demonstra um histórico de desrespeito à lei, justificando a medida.
É admitida se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, visando garantir a execução das medidas protetivas de urgência [120 (III), 243 (5), 258]. Este é um ponto crucial para a proteção de grupos vulneráveis.
Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la [120 (§ 1º), 243 (2)]. No entanto, após a identificação, o preso deverá ser imediatamente colocado em liberdade, salvo se outra hipótese legal recomendar a manutenção da medida [122 (2)].
Importante ressaltar que a prisão preventiva não é cabível contra contravenção penal [243 (6)].
O ordenamento jurídico estabelece limites claros para a decretação da prisão preventiva, visando proteger os direitos fundamentais do indivíduo:
A prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar, pelas provas constantes dos autos, que o agente praticou o fato em condições de excludentes de ilicitude, como [122, 123 (1), 244]:
Estado de necessidade;
Legítima defesa;
Estrito cumprimento do dever legal;
Exercício regular de direito.
A decretação da prisão preventiva não será admitida com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia [121 (§ 2º)]. A medida deve ter fins cautelares, não punitivos.
Uma das atualizações mais significativas trazidas pela Lei nº 13.964/2019, conhecida como "Lei Anticrime", foi a vedação da decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz.
Antes da Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019): O juiz podia decretar a prisão preventiva de ofício no curso da ação penal [114 (1), 115 (2)].
Após a Lei Anticrime: Atualmente, a prisão preventiva somente poderá ser decretada a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial [114, 115 (2), 242]. Esta mudança reforça o sistema acusatório, onde o juiz atua como um garantidor dos direitos, sem iniciativa na acusação.
A prisão preventiva é, por natureza, uma medida excepcional, um último recurso (ultima ratio). Isso se deve ao reconhecimento de que a restrição da liberdade antes de uma condenação definitiva é uma medida gravíssima, que interfere diretamente no princípio constitucional da presunção de inocência.
A Lei nº 12.403/11 foi fundamental para reforçar a natureza cautelar e excepcional da prisão preventiva no Brasil. Suas principais modificações incluíram:
Perda da Autonomia da Prisão em Flagrante: A prisão em flagrante perdeu sua autonomia, devendo o juiz, ao recebê-la, convertê-la em preventiva, conceder liberdade provisória ou impor outras medidas cautelares.
Novo Regime de Medidas Cautelares Alternativas: A lei disponibilizou aos magistrados um rol de inúmeras alternativas menos gravosas do que a prisão preventiva. A prisão preventiva só será aplicada quando as medidas cautelares diversas da prisão se mostrarem inadequadas ou insuficientes [11, 14, 117 (2), 258]. Isso significa que a prisão deve ser a última medida cautelar a ser aplicada.
Princípios Orientadores: A aplicação das medidas cautelares, incluindo a prisão preventiva, deve sempre respeitar a necessidade da situação, a adequação da medida à gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do imputado.
O princípio da presunção de inocência estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Deste princípio decorrem importantes consequências:
Liberdade como Regra: A liberdade do investigado deve ser a regra até que não haja mais recurso contra uma sentença condenatória.
Ônus da Prova: Quem acusa deve provar o que alega (ei incumbit probatio qui dicet, non qui negat).
Dúvida em Favor do Réu (In Dubio Pro Reo): Se o julgador tiver dúvidas quanto à culpa do acusado, deve absolvê-lo.
Mínima Intervenção Estatal: A intervenção estatal nos direitos individuais deve ser mínima, justificada apenas por risco real de interferência no processo ou fuga.
Apesar do arcabouço legal e principiológico, as fontes indicam que a prisão preventiva continua sendo utilizada de forma banalizada e indiscriminada no Brasil, o que é um reflexo de uma "cultura do direito penal máximo" e de uma mentalidade autoritária. Há uma preocupante discrepância entre a "lei no papel" e a "lei em ação".
É comum haver confusão entre a prisão preventiva e a prisão temporária, mas são institutos distintos com finalidades e prazos diferentes [118 (3), 251, 252].
Aspecto | Prisão Preventiva | Prisão Temporária |
Legislação | Código de Processo Penal (Arts. 311 a 316) | Lei nº 7.960/89 [118 (3), 252] |
Prazo | Não possui prazo determinado; dura enquanto os motivos subsistem [127 (2), 252] | Prazo fixo: 5 dias, prorrogável por mais 5 dias (para crimes comuns) [119 (4), 252] |
Fase Processual | Qualquer fase da investigação policial ou do processo penal [5, 114 (2), 127 (1), 241, 252] | Apenas durante a fase de investigação do inquérito policial [118 (3), 252] |
Objetivo | Garantir a ordem pública/econômica, conveniência da instrução criminal, aplicação da lei penal, cumprimento de medidas protetivas [116 (1), 243, 252] | Imprescindível para investigações, quando o indicado não tem residência fixa/identidade clara, ou há fundadas razões de autoria/participação em crimes específicos [118 (3), 252] |
Natureza | Cautelar, não punitiva | Cautelar, não punitiva |
Momento de Conversão | Não se converte em temporária. Pode ser revogada ou decretada novamente [127 (1)] | O preso deve ser imediatamente posto em liberdade após o prazo, salvo se já tiver sido decretada sua prisão preventiva [119 (4)] |
Surgem fatos novos que tornam a manutenção da prisão desnecessária, como o fim da fase de instrução, mudança de conduta do acusado, ou comprovação de residência fixa.
Uma importante atualização trazida pela Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019 o caso, solicitar a substituição por medidas cautelares alternativas menos severas (como comparecimento periódico à Justiça, proibição de contato com vítimas/testemunhas, uso de tornozeleira eletrônica).
A liberdade provisória é concedida logo após a prisão em flagrante, quando o juiz entende que não há necessidade de converter a prisão em preventiva. Permite que o acusado responda ao processo em liberdade, com ou sem fiança e aplicação de outras cautelares.
A revogação da prisão preventiva ocorre depois que a prisão já foi decretada e executada, porque os motivos que a ensejaram deixaram de existir.
Se o juiz negar o pedido de revogação, a defesa pode:
Impetrar um habeas corpus diretamente ao tribunal superior, alegando ilegalidade ou abuso.
Formular um novo pedido de revogação, desde que surjam fatos novos ou elementos que reforcem a desnecessidade da prisão.
Analisar a possibilidade de um recurso em sentido estrito, dependendo das regras do CPP.
A prisão ilegal ocorre quando a privação de liberdade de alguém acontece sem que existam os requisitos legais ou constitucionais que a autorizem. É uma das mais graves violações aos direitos fundamentais.
Uma prisão pode ser considerada ilegal em diversas situações, tais como:
Sem mandado judicial válido: Prisão realizada fora das hipóteses de flagrante delito ou sem ordem escrita e fundamentada de juiz competente.
Flagrante forjado: Simulação artificial de uma situação de flagrante delito.
Mandado com vício: Mandado expedido com erros ou sem base legal adequada.
Prisão com prazo excedido: Manutenção da prisão além do tempo legalmente permitido, como no caso da prisão temporária cujo prazo expirou [119 (4)].
Ausência ou negação de defesa: Quando o detido não tem acesso a um advogado ou ao contraditório.
Erro judiciário: Ordem de prisão fundamentada em dados falsos, provas inexistentes ou quando o acusado sequer cometeu o crime atribuído.
Abuso de autoridade: Quando a autoridade policial extrapola os limites da lei, agindo com violência ou coação.
As consequências de uma prisão ilegal podem ser severas para o indivíduo e para o Estado:
Relaxamento imediato da prisão: A Constituição Federal (Art. 5º, inciso LXV) determina que a prisão ilegal deve ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária competente [178, 182 (1), 185, 188].
Responsabilização do Estado: A vítima pode ingressar com ação de indenização por danos morais e materiais contra o Estado, com base na responsabilidade objetiva [182 (2), 184].
Responsabilização dos agentes públicos: Policiais ou autoridades que cometeram abuso podem responder por abuso de autoridade e outras sanções administrativas ou penais [182 (3), 185].
Nulidade dos atos processuais: Atos praticados após a prisão ilegal podem ser anulados, comprometendo a validade de todo o processo [182 (4)].
Impactos pessoais e sociais: A vítima pode sofrer estigmatização, perda de emprego, abalo psicológico e exposição indevida na mídia, causando traumas irreparáveis [182 (5), 184].
Diante de uma prisão ilegal, a atuação célere de um advogado especialista é fundamental. As medidas incluem:
Realizar uma análise detalhada da situação para verificar a legalidade da prisão.
Impetrar um habeas corpus, instrumento constitucional para garantir a liberdade de quem sofre ou está ameaçado de sofrer coação ilegal na liberdade de locomoção.
Entrar com um pedido de relaxamento da prisão junto ao juiz competente.
Representar contra os responsáveis perante o Ministério Público ou a Corregedoria da Polícia em casos de abuso de autoridade.
Apesar de ser uma medida de exceção, a prisão preventiva tem sido utilizada de forma banalizada e indiscriminada no Brasil, o que é um problema grave e complexo.
O sistema prisional brasileiro enfrenta um caos, em parte, devido ao uso excessivo da prisão preventiva. Dados recentes revelam que:
Em 2014, quase metade dos presos no Brasil (41%) estava segregada cautelarmente, sem condenação definitiva (excluindo prisão domiciliar). Incluindo a prisão domiciliar, o índice era de 32%.
Em 2012, esse número era de 37,6%.
Isso indica que a Lei nº 12.403/11, embora tenha buscado reduzir o uso indiscriminado, não resultou em uma modificação significativa no panorama da prisão cautelar. Uma pesquisa no Rio de Janeiro (2013) mostrou que, mesmo após a Lei de 2011, a prisão preventiva continuou sendo a medida preferida em 79% dos casos analisados.
As causas da banalização são diversas:
Mentalidade Autoritária: Permanece uma mentalidade atrelada a legislações de períodos autoritários, onde a antecipação da culpa era vista com naturalidade. Há uma "cultura do direito penal máximo".
Urgência e Pressão Midiática: A prisão preventiva é muitas vezes utilizada para satisfazer a opinião pública por segurança, criando uma falsa sensação de justiça instantânea, especialmente sob o foco de programas sensacionalistas.
Vaguidade do Termo "Ordem Pública": A indefinição deste fundamento permite que ele seja usado em larga escala como instrumento de controle, especialmente para "responder às demandas da população amedrontada".
Deficiências do Sistema de Justiça: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apontou como causas a demora na prestação jurisdicional, a falta de capacidade operativa das polícias e a falta de acesso às defensorias públicas.
A banalização da prisão preventiva acentua o caráter seletivo do sistema penal, que atinge desproporcionalmente os indivíduos pertencentes aos estratos economicamente menos privilegiados da população.
Criminalização da Pobreza: Pesquisas demonstram que o sistema penal seleciona sua "clientela" nos setores mais vulneráveis. Por exemplo, crimes contra o patrimônio e tráfico de entorpecentes concentram a maioria da população carcerária, em contraste com crimes contra a administração pública, geralmente praticados por indivíduos mais privilegiados.
Desigualdade na Duração da Prisão: Estudos revelam que pessoas com menor grau de instrução permanecem mais tempo presas cautelarmente do que aquelas com ensino superior. Da mesma forma, réus com advogado particular deixam o cárcere mais rapidamente do que os representados pela Defesa Pública.
Discrepância entre Prisão e Sentença: Muitos acusados que aguardaram o processo segregados acabam recebendo sentenças absolutórias ou de regime mais brando, evidenciando prisões ilegais que poderiam ter sido evitadas.
Diante da complexidade e dos riscos associados à prisão preventiva, a atuação de um advogado criminalista especialista é indispensável para a defesa dos direitos do cidadão.
Análise e Contestação: O advogado é crucial para realizar a análise detalhada da legalidade da prisão, verificar o respeito aos requisitos e fundamentos, e identificar possíveis abusos de autoridade.
Medidas Judiciais: Ele é responsável por impetrar habeas corpus, apresentar pedidos de relaxamento e revogação da prisão preventiva, e solicitar a substituição por medidas cautelares alternativas.
Proteção e Orientação: O profissional orienta o preso e sua família sobre os direitos, acompanha os trâmites judiciais, e busca a reparação dos danos sofridos pela prisão ilegal.
Combate à Banalização: A defesa técnica de qualidade é um meio fundamental para combater a banalização do instituto, exigindo que a prisão preventiva seja tratada como a medida excepcional que é, em estrita conformidade com a Constituição e a lei.
A garantia do direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana exige vigilância constante e uma atuação jurídica firme e estratégica, especialmente em um contexto onde os direitos fundamentais podem ser preteridos em nome de uma pretensa defesa social.