Lima Barreto é um dos escritores mais fundamentais e complexos da literatura brasileira, cujo trabalho se destaca como uma denúncia incisiva do racismo e da exclusão social no período da Primeira República. Sua obra, identificada com o Pré-modernismo, transcendeu as preocupações estéticas de sua época, assumindo uma função social e militante.
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881–1922) foi um jornalista e escritor brasileiro.
Nascimento e Morte: Nasceu em 13 de maio de 1881 e faleceu prematuramente em 1º de novembro de 1922, aos 41 anos, no Rio de Janeiro, vítima de um enfarte agudo do miocárdio.
Etnia e Origem Social: Era negro (ou mulato, conforme outras fontes da época), filho de pais negros e pobres, vivendo em uma condição de classe média baixa. Desde cedo, enfrentou o preconceito racial.
Movimento Literário: É amplamente identificado com o Pré-modernismo brasileiro.
Ocupação: Escritor, jornalista e cronista. Trabalhou como funcionário público do Ministério da Guerra.
Obra de Maior Destaque (Magnum Opus): Triste Fim de Policarpo Quaresma.
Lima Barreto viveu durante um período de profundas transformações no Brasil: o final do século XIX e o início do século XX, com a Proclamação da República (1889).
O Pré-modernismo (c. 1902–1922) é um período de transição na literatura brasileira. Lima Barreto e outros autores, como Euclides da Cunha, atuaram na virada do século, mas, ao contrário de seus contemporâneos parnasianos e simbolistas, sua obra se concentrava em denunciar as irregularidades do governo e as tensões sociais.
A crítica considera que Lima Barreto virou "pelo avesso a imagem fútil da belle époque carioca", expondo a hipocrisia e a falsidade das relações sociais e da República que havia substituído o regime anterior, mas que era igualmente excludente do ponto de vista socio-racial.
Lima Barreto definiu seu projeto literário como o de uma "literatura militante", buscando criticar o mundo circundante para provocar mudanças nos costumes e nas práticas que beneficiavam apenas certas classes sociais.
Ele rejeitava o preciosismo estético e o culto ao dicionário, criticando Coelho Neto. Seu estilo era marcadamente coloquial, despojado e direto, o que o levou a ser acusado de "escritor descuidado" por críticos modernistas. No entanto, documentos manuscritos mostram o contrário, revelando que ele escrevia e reescrevia seus textos com atenção.
Sua busca estética era por uma beleza intrínseca à substância da obra, não por aparências formais. Ele queria que a literatura fosse um meio de comunhão entre os homens de todas as raças e classes, para que se compreendessem na "infinita dor de serem homens".
Ponto de Contraste (Muito Cobrado em Provas): Enquanto a elite literária da época adotava um estilo artificial e erudito (como Olavo Bilac e Rui Barbosa), Lima Barreto defendia e praticava o uso de uma linguagem próxima da "fala brasileira", um fator que mais tarde influenciaria os escritores modernistas da Semana de 22.
A vida de Lima Barreto e a ambientação de suas obras estão intimamente ligadas aos subúrbios cariocas, especialmente Todos os Santos. Essa escolha de cenário foi revolucionária, pois deslocou o foco da literatura da centralidade aristocrática para as margens da sociedade.
Etnografia do Cotidiano: Em seu trajeto diário de trem para o trabalho no Ministério da Guerra, Lima Barreto observava e anotava as pessoas, as roupas, as expressões e a "arquitetura caótica" dos subúrbios. Essa observação detalhada (sua "etnografia das cores") forneceu a base realista para seus romances.
Vida Popular e Padrinho Informal: Lima Barreto era profundamente enraizado em sua vizinhança, tratando-o como um padrinho informal. Ele tinha um tremendo afeto pelos subúrbios.
O Conceito de "Gatos": O termo "gatos" é usado pelo escritor em suas cartas para descrever os erros de edição (fios soltos) em seus livros, mas também remete metaforicamente aos fios de eletricidade desordenados e emaranhados que percorriam os subúrbios.
Lima Barreto utilizou o romance, o conto e a crônica como instrumentos de denúncia social e resgate do humano.
O romance, considerado sua magnum opus, narra a história de Policarpo Quaresma, um funcionário público patriota exaltado, metódico, disciplinado, ingênuo e visionário.
O livro é uma sátira mordaz e bem-humorada da sociedade e da política da Primeira República. Quaresma, em sua busca por um nacionalismo utópico, tenta implementar três grandes projetos para resgatar a "verdadeira cultura brasileira":
Projeto Cultural/Linguístico: Propõe ao Congresso Nacional a substituição do português pelo tupi-guarani como língua oficial, por considerá-la a legítima língua brasileira, adequada aos nossos "órgãos vocais e cerebrais".
Resultado: É ridicularizado e considerado louco, sendo internado em um hospício.
Projeto Agrícola: Após a internação, isola-se em um sítio ("Sossego") e dedica-se à agricultura, na crença de que o solo brasileiro é o mais fértil do mundo.
Resultado: Seu projeto fracassa devido ao descaso do governo, à terra ruim, e à praga das formigas saúvas.
Projeto Político: Envolve-se na Revolta da Armada, esperando que um governo forte (Floriano Peixoto) pudesse mudar o sistema corrupto.
Resultado: Vê a crueldade e o autoritarismo do militarismo e, ao denunciar os assassinatos de prisioneiros, é visto como traidor e executado.
Conclusão Crítica (Louco ou Nacionalista?): O romance expõe o desajuste entre o imaginário e o real. Policarpo Quaresma morre decepcionado, percebendo que a pátria que idealizava era um mito. A obra usa a caricatura e a ironia para focalizar os limites da ideologia nacionalista e a rigidez de uma sociedade autoritária.
Este é um romance de teor autobiográfico. Isaías Caminha, o protagonista, enfrenta preconceitos sociais e raciais em sua busca por ascensão na profissão de jornalista.
A Força do Meio Social: Lima Barreto utiliza a ideia do determinismo (influência de Taine) para argumentar que o fracasso de um indivíduo como Isaías não se deve às suas qualidades intrínsecas, mas sim ao fato de ser "batido, esmagado, prensado pelo preconceito", que é uma coisa externa a ele.
O Doutorismo e o Branqueamento Social: A obsessão pela instrução superior e pelo título de "doutor" é explorada, pois, para o personagem, ser doutor significava uma tentativa de superação da "vulgaridade inerente da raça" e de conquista de igualdade. O sucesso profissional é, ironicamente, um fator de branqueamento social do personagem.
Concluído pouco antes de sua morte, este romance está inteiramente ambientado na etnografia dos subúrbios que Lima Barreto colecionou em seus manuscritos. É uma obra crucial para a compreensão da incidência da população negra em suas narrativas e das situações que envolvem pessoas negras.
Lima Barreto foi um dos críticos mais agudos das teorias raciais, eugênicas e do projeto de branqueamento que dominavam o pensamento intelectual e político da Primeira República.
Inferioridade Racial como Estratégia Política: O escritor via as teorias que afirmavam a inferioridade do negro e do mestiço (inspiradas em Gobineau, Lapouge e outros, e defendidas por intelectuais brasileiros como Nina Rodrigues) não como verdade científica, mas como instrumentalização política para proteger os privilégios da raça branca.
O Projeto de Branqueamento: O pensamento da época considerava a miscigenação (negros, índios, mestiços) um fator de vergonha nacional e que a imigração europeia era essencial para o embranquecimento da nação, visando o progresso. Barreto criticou veementemente essa mentalidade.
Crítica à Antropometria: Lima Barreto satirizou técnicas pseudocientíficas como a Antropometria (medição de crânios). Ele questionava a ideia de que a capacidade intelectual poderia ser medida pelo tamanho do cérebro ou que as variações raciais pudessem ser usadas como critério de superioridade ou inferioridade. Ele satirizou essa técnica em Isaías Caminha.
A Inversão Crítica (Conceito Chave): Barreto problematizou o determinismo biológico. Em vez de aceitar que a raça determinava a posição social, ele argumentou o contrário: o meio social e o preconceito racial é que condicionavam o fracasso e o desajustamento dos negros e mulatos.
Lima Barreto sofreu com crises de alcoolismo e depressão, resultando em várias internações no Hospício Nacional de Alienados. Essa experiência pessoal se transformou em matéria literária nas obras Diário do Hospício (anotações de 1918) e no romance inacabado Cemitério dos Vivos.
Loucura como Categoria Sócio-Histórica: Para Barreto, e para a crítica atual, a loucura não é apenas um fato biológico, mas uma categoria social usada para excluir. Os grupos em situação de dominação — como negros, pobres e mulheres — eram os "loucos preferenciais".
O Hospício como Espelho Social: Ele notou que a ala dos doentes "mais insuportáveis" (a seção Pinel) era majoritariamente ocupada por indivíduos das camadas mais pobres e de pigmentação negra, muitas vezes recolhidos pela polícia. O hospício era uma réplica da estrutura social, com suas divisões de classes.
Crítica ao Tratamento: Lima Barreto era cético quanto à finalidade curativa do hospício, considerando-o mais uma forma de "sequestro". Ele sentia o medo de ser usado como "cobaia" pelos médicos, dada sua condição de "pária social".
Alcoolismo e Rejeição Social: A sua justificada preocupação com o preconceito racial e as escassas possibilidades de ascensão social motivaram o uso da bebida como forma de extravasamento da rejeição.
A correspondência entre Lima Barreto e Monteiro Lobato é a mais conhecida do público, mas não necessariamente a mais relevante. Lobato, apesar de ter inclinações à eugenia (chegando a elogiar a Ku Klux Klan), ajudou Lima Barreto em diferentes momentos, publicando um conto dele e o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá.
A troca de cartas era amistosa e cheia de ironia. Em uma passagem famosa, Lobato pediu a confirmação do endereço de Lima, que respondeu de forma irreverente: "eu não sou quilombola, não". Barreto era um mestre informal para Lobato e outros jovens escritores que buscavam seu incentivo e inspiração.
Durante sua vida, Lima Barreto sofreu um "silêncio implacável" e foi excluído da crítica oficial, sendo considerado um marginal das letras por sua "posição combativa" e "crítica contundente".
Sua obra só foi redescoberta e valorizada postumamente, graças ao esforço incansável de pesquisadores como Francisco de Assis Barbosa, que retirou grande parte dos livros do limbo e organizou suas obras dispersas, incluindo a totalidade das cartas encontradas e o Diário Íntimo. Lilia Schwarcz, autora da biografia Lima Barreto, triste visionário (Prêmio Jabuti, 2017), contribuiu para reposicionar Lima Barreto, destacando os marcadores sociais das diferenças (raça, gênero, classe, etc.) e ressaltando as ambivalências de sua personalidade.
Lima Barreto nasceu apenas sete anos antes da Lei Áurea (1888). Ele reconhecia o 13 de maio como uma data "sagrada" de redenção contra a opressão. No entanto, foi uma das vozes mais contundentes ao denunciar a "falsa abolição".
Para o escritor, a Abolição não aumentou as oportunidades do negro, e a Proclamação da República (1889) foi incapaz de promover a cidadania e a igualdade. Pelo contrário, o regime republicano era visto como plutocrático, corrupto e excludente, continuando a tratar o negro como "cidadão de segunda categoria".
Lima Barreto não amava a República, que para ele era a época em que os pardos eram "mais postos à margem". Sua literatura, ao se dedicar a um retrato sarcástico da sociedade, funcionava como um veículo para combater o autoritarismo e a hipocrisia.
A importância da obra de Lima Barreto reside em sua capacidade de humanizar os grandes personagens e trazer à tona suas contradições. Suas cartas e diários revelam a sua ironia, suas ambiguidades e sua sensação de fracasso.
A leitura de Lima Barreto nos força a uma revisão crítica da história social brasileira do início do século XX. Sua literatura, por não se submeter aos cânones da ciência, permite representar o ser humano em toda a sua complexidade, incluindo a dor, as contradições, e a marginalidade. Ele foi um pioneiro em dar voz aos marginalizados e pobres na literatura nacional.
Para provas e aprofundamento, as seguintes obras são as mais citadas:
Gênero | Obra (Ano de Publicação Original) | Foco Principal |
Romance | Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) | Sátira política e social; Nacionalismo ingênuo; Loucura. |
Romance | Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) | Racismo, ascensão social, crítica ao jornalismo. |
Romance (Póstumo) | Clara dos Anjos (1922/1948) | Racismo e opressão da mulher negra nos subúrbios. |
Novela (Póstuma e Inacabada) | Cemitério dos Vivos (1920/1956) | Experiência de internação, loucura, autobiografia. |
Memórias | Diário do Hospício (1920/1956) | Notas e reflexões durante a internação. |
Crônicas | Os Bruzundangas (1923) | Sátira sobre o Brasil (a Bruzundanga). |