A evolução biológica é um dos pilares da biologia moderna, e dois nomes se destacam historicamente nesse campo: Jean-Baptiste Lamarck e Charles Darwin. No entanto, a forma como Lamarck é frequentemente apresentado em materiais didáticos pode ser simplificada e até equivocada, levando a muitas confusões conceituais.
Ao final deste texto, você será capaz de:
Compreender a teoria evolutiva completa de Lamarck, para além das duas leis mais conhecidas.
Contextualizar a vida e a obra de Lamarck em seu tempo histórico.
Identificar as verdadeiras semelhanças e diferenças entre o Lamarckismo e o Darwinismo.
Desmistificar o famoso (e problemático) exemplo do pescoço da girafa.
Entender a relevância contínua de Lamarck e as discussões modernas sobre a herança de caracteres adquiridos, como a epigenética.
Prepare-se para uma jornada no tempo que transformará sua visão sobre um dos maiores pensadores da biologia!
Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck (1744-1829), foi um naturalista francês de enorme importância para a história da ciência, embora tenha falecido sem o devido reconhecimento de suas ideias. Sua trajetória é fundamental para entender o contexto em que sua teoria evolutiva foi desenvolvida.
Origens e Formação: Nascido em Bazentin, França, em uma família nobre em declínio, Lamarck inicialmente foi encaminhado para a carreira eclesiástica. No entanto, sua vida tomou um rumo diferente ao ingressar no exército em 1761, participando da Guerra dos Sete Anos. Uma infecção no pescoço (escrófula) o levou a abandonar a carreira militar em 1768.
Interesse pela História Natural: Após se mudar para Paris e viver com uma modesta pensão, Lamarck desenvolveu um profundo interesse por medicina e, especialmente, por botânica.
Flora Francesa: Em 1778, publicou sua obra em quatro volumes, Flora Francesa, um manual de identificação de plantas que o tornou conhecido por ser escrito em francês, tornando-o acessível a um público mais amplo, não apenas a cientistas que usavam latim.
Ascensão no Museu de História Natural: Graças ao apoio do Conde de Buffon, Lamarck conseguiu uma posição como assistente no Departamento de Botânica do Museu de História Natural em 1788. Após a Revolução Francesa, em 1793, ele foi nomeado professor de insetos e vermes, o que mais tarde o levou a cunhar o termo "invertebrados" e a ser o primeiro a separar grupos como Crustacea, Arachnida e Annelida de Insecta.
Cunhando o termo "Biologia": Além de "invertebrados", Lamarck é creditado por propor e difundir o termo "Biologia" em 1802, definindo-o como a ciência que estuda tudo o que se refere aos corpos vivos, sua organização, desenvolvimento e transformação.
Influências Filosóficas: Lamarck foi profundamente influenciado pelas correntes de pensamento do século XVIII. Ele adotou uma amálgama de deísmo e uma síntese das ideias newtonianas e leibnizianas. De Newton, ele aceitou a fé em um universo regido por leis imutáveis e a convicção de que os fenômenos poderiam ser explicados por leis universais. De Leibniz, ele abraçou a crença na perfeita harmonia, plenitude e continuidade do universo.
O Estudo dos Fósseis: No final da década de 1790, ao estudar coleções de moluscos no Museu de Paris, Lamarck percebeu que muitas espécies vivas possuíam equivalentes fósseis. Mais ainda, ele conseguiu ordenar esses fósseis em séries cronológicas contínuas, levando-o à conclusão de que as espécies mudavam gradual e lentamente ao longo do tempo.
Lamarck faleceu em 1829, cego e pobre, sem o reconhecimento da comunidade científica da época. Suas teorias não causaram grande impacto inicial. Ironicamente, foi Charles Darwin, em edições posteriores de A Origem das Espécies, quem reconheceu a importância de Lamarck por ter chamado a atenção para a probabilidade de que todas as mudanças são resultado de leis, e não de intervenções miraculosas. É fundamental entender que Lamarck foi o primeiro a propor uma teoria completa e bem fundamentada da evolução biológica, desafiando as concepções de origem divina e imutabilidade das espécies.
Quando o assunto é Lamarck, a maioria dos livros didáticos (e até mesmo professores) o resume a duas leis: a do "uso e desuso" e a da "herança dos caracteres adquiridos". No entanto, essa simplificação é imprecisa e distorce a riqueza de seu pensamento. A teoria de Lamarck, que ele chamava de "progressão dos animais" ou "transformação das espécies" (o termo "evolução" no século XIX referia-se ao desenvolvimento individual – ontogênese – e não à mudança das espécies ao longo do tempo), era muito mais complexa.
Lamarck apresentou as leis de sua teoria em diferentes obras. Enquanto em Philosophie Zoologique (1809) ele menciona duas leis, em sua última versão, no primeiro volume de Histoire naturelle des animaux sans vertèbres (1815), ele as expandiu para quatro leis.
Vamos explorar cada uma delas em uma ordem didática, do mais fundamental ao mais específico, para uma compreensão completa.
Lamarck acreditava que a vida surgia continuamente por geração espontânea (ou "gerações diretas", como ele preferia chamar).
Origem das Formas Simples: Segundo ele, a natureza, com o auxílio do calor, luz, eletricidade e umidade, formava "germes" (ébauches) – formas de vida muito simples, gelatinosas ou mucilaginosas, sem órgãos especializados, como infusórios.
Exclusividade para Organismos Simples: É crucial notar que Lamarck negava a geração espontânea de organismos mais complexos. Ele aceitava as demonstrações de cientistas como Lazzaro Spallanzani e Francesco Redi, que refutaram a geração espontânea para seres superiores.
Ponto de Início de Novas Linhagens: Assim, a geração espontânea era o mecanismo pelo qual novas linhagens evolutivas surgiam constantemente, fornecendo uma base para a diversidade de vida que observamos.
Esta lei, que apareceu de forma mais clara em sua obra posterior de 1815, é fundamental para entender a visão de Lamarck sobre a evolução:
Princípio: "A vida, por suas próprias forças, tende continuamente a aumentar o volume de todo o corpo que a possui, e a estender as dimensões de suas partes, até um limite que lhe é próprio".
Analogia Ontogenética: Lamarck traçou uma analogia entre a progressão das espécies e o desenvolvimento de um organismo individual (ontogenia), do ovo ao adulto. Assim como um organismo individual se torna mais complexo ao longo de sua vida, as espécies mais simples teriam surgido a partir de formas ainda mais simples e progredido em complexidade ao longo do tempo.
Força Inerente à Vida: Para Lamarck, existia uma força intrínseca à vida que impulsionava os organismos em direção a um aumento de volume, complexidade e aperfeiçoamento. Ele via a evolução como uma "marcha progressiva para a perfeição".
Cadeia de Perfeição: Essa força explicava a existência de uma "escala de perfeição" ou "cadeia de perfeição das massas animais", na qual os organismos evoluíam de formas mais simples (como pólipos e infusórios) para formas mais complexas (culminando nos mamíferos, e especialmente no homem).
Importante: Para Lamarck, essa escala era uma progressão linear, onde moluscos e mamíferos, por exemplo, não compartilhavam uma ancestralidade comum. Em sua visão, a diversidade de vida era um conjunto de linhas paralelas de desenvolvimento que surgiam por geração espontânea e evoluíam progressivamente.
Homem no Ápice: A organização humana representava o ápice da perfeição e complexidade para Lamarck. Ele concebia a inteligência e as faculdades humanas como desdobramentos naturais das funções fisiológicas do sistema nervoso e dos fluidos.
Extinção como Transformação: Diferentemente da visão moderna, Lamarck via a extinção como um "pseudoproblema". Para ele, as espécies "desaparecidas" (encontradas como fósseis) ainda existiam, mas haviam se transformado a ponto de não serem mais reconhecíveis, ou poderiam reaparecer em fases subsequentes de transformação.
Esta lei, embora pareça similar à próxima, foca na origem de novos órgãos:
Princípio: "A produção de um novo órgão em um corpo animal resulta de uma nova necessidade que surgiu e que continua a se fazer sentir, e de um novo movimento que essa necessidade faz surgir e mantém".
Hábitos e Circunstâncias Ambientais: Para Lamarck, não são as partes do corpo que criam os hábitos, mas sim os hábitos, o modo de vida e as circunstâncias ambientais que, ao longo do tempo, moldam a forma do corpo e o estado e número de seus órgãos.
A "Necessidade" (não o "Desejo"): Uma das maiores confusões sobre Lamarck é a interpretação errônea da palavra francesa "besoin" como "desejo" ou "vontade". Lamarck não era ingênuo a ponto de acreditar que um desejo consciente pudesse gerar novas estruturas. Ele se referia a uma necessidade fisiológica impulsionada pelo ambiente, como a busca por alimento ou abrigo. Por exemplo, ele argumentou que os gastrópodes (caracóis) desenvolveram tentáculos sensoriais pela necessidade de sentir objetos à sua frente, o que concentrou "fluidos nervosos" e estimulou a formação dessas novas estruturas.
Esta é a lei mais famosa e frequentemente associada a Lamarck:
Princípio: "O desenvolvimento dos órgãos e sua força de ação ocorrem constantemente devido ao uso desses órgãos". Ela afirma que o uso mais frequente de um órgão o fortalece e desenvolve, enquanto a falta constante de uso o enfraquece, atrofia e, eventualmente, o faz desaparecer.
Adaptação ao Ambiente: Essa lei explicava como as mudanças no ambiente poderiam levar a alterações físicas nos indivíduos. Se um ambiente mudasse, criando novas necessidades comportamentais, os indivíduos que utilizassem mais ou menos certas estruturas desenvolveriam ou atrofiariam essas características, adaptando-se.
Exemplos de Uso e Desuso:
Uso: Membranas entre os dedos de aves aquáticas (formadas pelo hábito de esticar os dedos na água para nadar) e cascos de quadrúpedes pastadores (para sustentar o corpo pesado).
Desuso: Ausência de dentes em tamanduás (pela falta de uso) e o desaparecimento das patas em serpentes (devido ao hábito de se arrastar).
A Exceção Mais Cobrada em Concursos: Um ponto crucial a ser notado é que a lei do uso e desuso não se aplica a habilidades cognitivas ou intelectuais. Por exemplo, ler muito não aumenta o cérebro em tamanho ou desenvolvimento de forma que seja herdável, nem tocar piano faz com que os filhos nasçam com dedos mais longos para o instrumento. Essa é uma exceção importante que diferencia características físicas (estrutura, músculos) de habilidades adquiridas por aprendizado, e que é frequentemente cobrada em questões.
Esta lei complementa a terceira, explicando a transmissão das modificações:
Princípio: "Tudo o que foi adquirido, traçado ou alterado na organização dos indivíduos, durante o curso de suas vidas, é preservado pela geração e transmitido aos novos indivíduos que provêm daqueles que experimentaram essas mudanças".
Condições para Transmissão: Lamarck ressaltou que, para que uma característica adquirida fosse transmitida, ela precisava ser comum a ambos os sexos. Ele também admitia que nem sempre as mudanças adquiridas seriam transmitidas.
Exclusão de Mutilações Acidentais: É fundamental notar que Lamarck excluiu expressamente a herança de mudanças acidentais, como lesões ou amputações de membros. Essa é uma diferença crucial em relação a Darwin, como veremos adiante.
Ausência de Mecanismo Explicativo: Lamarck não propôs um mecanismo detalhado para explicar como essa transmissão ocorria. Ele simplesmente a aceitou como um fato amplamente aceito na época, talvez por ser um naturalista de museu que estudava animais mortos e fósseis, baseando-se em observações hipotéticas.
O exemplo do pescoço da girafa é, sem dúvida, o mais utilizado para ilustrar (e frequentemente distorcer) as teorias de Lamarck e Darwin. No entanto, sua apresentação tradicional é um grande mal-entendido histórico que precisa ser corrigido.
Lamarck (narrativa simplificada): Girafas ancestrais tinham pescoços curtos. Para alcançar folhas altas em tempos de escassez, elas esticavam o pescoço. Esse esforço alongava o pescoço, e essa característica adquirida era transmitida aos descendentes, que nasciam com pescoços ligeiramente maiores. De geração em geração, os pescoços se alongariam.
Darwin (narrativa simplificada): Girafas já nasciam com pescoços de comprimentos variados. As de pescoço mais longo tinham vantagem para se alimentar, sobrevivendo e reproduzindo mais. Elas passavam o gene do pescoço longo para seus descendentes, que já nasciam com essa característica. A seleção natural, nesse caso, "selecionaria" as girafas mais adaptadas.
Lamarck e a Girafa: Lamarck mencionou o pescoço da girafa apenas em um único parágrafo de Philosophie Zoologique, e não como um exemplo central de sua teoria. Além disso, ele cometeu um erro ao afirmar que as patas dianteiras das girafas eram mais longas que as traseiras, o que sugere que ele não deu atenção detalhada a esse animal.
Darwin e a Girafa: Na primeira edição de A Origem das Espécies, Darwin não menciona o pescoço da girafa. Ele se refere à cauda da girafa em relação à seleção natural. O exemplo do pescoço da girafa só aparece em edições posteriores (especificamente na sexta edição de A Origem das Espécies).
A "Ironia Darwiniana": O mais surpreendente é que Darwin aborda o caso da girafa em resposta a críticas de outros naturalistas, como Georges Mivart, que usava a girafa para refutar a seleção natural. E, crucialmente, Darwin não rejeitava a lei do uso e desuso. Ele, na verdade, acreditava na herança de caracteres adquiridos e a considerava uma fonte de variação sobre a qual a seleção natural atuava. Portanto, o próprio Darwin era, em parte, um "lamarckista". Para ele, o pescoço da girafa poderia ter sido alongado tanto pela seleção natural quanto pelos efeitos do uso intensificado.
Por que o Mito da Girafa Persiste?: Essa narrativa simplificada se popularizou por volta do final do século XIX, quando as obras sobre história da ciência tendiam a criar uma dicotomia entre "heróis" (como Darwin) e "perdedores" (como Lamarck).
Entendimento Moderno da Girafa: Atualmente, evidências sugerem que o alongamento do pescoço das girafas evoluiu principalmente por conferir vantagem no combate sexual entre os machos, sendo o acesso a folhas mais altas um efeito secundário.
Conclusão sobre a Girafa: O exemplo da girafa é didaticamente problemático e historicamente infundado. É essencial que os estudantes compreendam que a ciência é um esforço coletivo e que as ideias não surgem do nada, mas são construídas sobre o trabalho de predecessores.
A comparação entre as teorias de Lamarck e Darwin é um tema central em biologia evolutiva e um ponto muito cobrado em concursos. No entanto, muitas vezes é apresentada de forma excessivamente simplificada, focando apenas na "Lei do Uso e Desuso" para Lamarck e na "Seleção Natural" para Darwin.
É importante notar que, apesar das diferenças fundamentais, Lamarck e Darwin compartilhavam algumas ideias:
Mudança Biológica ao Longo do Tempo: Ambos postularam que as espécies biológicas mudam e se transformam ao longo do tempo, rompendo com a ideia da imutabilidade das espécies e da criação divina.
Influência do Ambiente: Ambos atribuíram uma enorme influência ao ambiente no processo de mudança das espécies.
Reconhecimento do Uso e Desuso: Darwin, assim como Lamarck, acreditava na lei do uso e desuso e na herança de caracteres adquiridos. Para Darwin, essas leis explicavam a origem da variação sobre a qual a seleção natural atuava. Ele até forneceu mais exemplos do que Lamarck, incluindo a herança de cicatrizes e mutilações (algo que Lamarck negava).
A Pangenese de Darwin: Diferentemente de Lamarck, Darwin tentou propor um mecanismo para a herança de caracteres adquiridos com sua "Hipótese Provisória da Pangênese". Ele acreditava que todas as partes do corpo expeliam partículas (gêmulas) que se acumulavam nos órgãos sexuais e eram transmitidas aos descendentes, explicando a herança de características adquiridas, incluindo mutilações. Embora testada e refutada por Francis Galton, essa hipótese mostra o quanto Darwin estava comprometido com a ideia da herança do adquirido.
Lista de Exercícios:
Qual é a principal ideia por trás da teoria do Lamarckismo?
A) As características hereditárias são determinadas pelo material genético presente nos gametas.
B) As mudanças ambientais causam mudanças nos organismos, que são transmitidas aos descendentes.
C) A seleção natural é o principal mecanismo de evolução.
D) As características adquiridas durante a vida de um organismo não são transmitidas aos seus descendentes.
Qual exemplo é frequentemente usado para ilustrar a teoria do Lamarckismo?
A) Evolução do bico das aves.
B) Crescimento das asas das borboletas.
C) Aquisição de pescoço longo pelas girafas.
D) Desenvolvimento da coloração dos peixes.
Por que o Lamarckismo foi refutado pela ciência moderna?
A) Porque a teoria não considerava a influência do meio ambiente nas características dos organismos.
B) Porque as mudanças adquiridas durante a vida de um organismo não são transmitidas aos seus descendentes.
C) Porque Lamarck não era um cientista reconhecido na sua época.
D) Porque as características hereditárias são determinadas pelo ambiente.
Gabarito:
B) As mudanças ambientais causam mudanças nos organismos, que são transmitidas aos descendentes.
C) Aquisição de pescoço longo pelas girafas.
B) Porque as mudanças adquiridas durante a vida de um organismo não são transmitidas aos seus descendentes.