A Prosa Romântica Urbana, surgida no Brasil no século XIX, é um gênero fundamental para a literatura nacional. Ela nasce no contexto do Romantismo Brasileiro, movimento que buscou, acima de tudo, construir uma identidade nacional após a Independência política em 1822.
Antes da chegada do Romantismo, as manifestações literárias em prosa eram poucas e inexpressivas no país, sendo a poesia, surgida no Barroco e que atravessou o Neoclassicismo, o gênero dominante. É, portanto, no Romantismo que o romance brasileiro nasce.
O grande projeto da Prosa Romântica Urbana era retratar a sociedade e os costumes da época, com foco especial na capital do Império, o Rio de Janeiro.
O Romance Urbano é uma narrativa longa cuja principal característica é ter a cidade como espaço central da ação. Ele é um dos quatro tipos de romances desenvolvidos por José de Alencar, ao lado dos romances indianistas, regionalistas e históricos.
Dúvida Comum / Termo Sinônimo: O Romance Urbano é também amplamente conhecido como Romance de Costumes.
A produção da Prosa Romântica Urbana ocorre durante o período do Segundo Reinado. Este momento é marcado por transformações sociais significativas, incluindo o início de um processo de urbanização, seguindo modelos europeus, e a ascensão de uma nova mentalidade: a burguesia. O Rio de Janeiro, sendo a capital do Império português, tornava-se o centro dessa nova dinâmica social e, consequentemente, o principal palco das narrativas românticas.
O nascimento do romance brasileiro é atribuído a dois autores, ambos de 1844:
Teixeira e Souza: Com O filho do pescador (1844).
Joaquim Manuel de Macedo: Com A Moreninha (1844).
Antonio Candido destacou que Joaquim Manuel de Macedo foi um "abridor de caminhos", pois conferiu prestígio e posição social ao gênero romance na época. Embora A Moreninha seja considerada a primeira obra do gênero, Macedo não resiste a uma análise crítica mais rigorosa, mas sua importância para estimular jovens escritores é inegável.
A popularização da Prosa Romântica Urbana está intrinsecamente ligada ao folhetim.
O que é: O folhetim (feuilleton) é uma narrativa literária seriada (prosa de ficção ou romance) publicada em capítulos em periódicos (jornais e revistas).
Onde se Publicava: No século XIX, era publicado, muitas vezes, no rodapé da primeira página do jornal, sendo sua maior atração.
A Estrutura do Suspense: O folhetim é caracterizado pela peripécia e pelo uso de ganchos (final de capítulo em momento crítico de suspense), técnica que incentivava o leitor a comprar o jornal do dia seguinte para saber o desfecho. Essa estratégia é hoje observada nas telenovelas.
O Público: O público cativo dos folhetins era majoritariamente feminino, composto por moças da burguesia e da elite que tinham tempo ocioso. Para esse público, os folhetins moldavam o imaginário sobre o amor e a vida conjugal.
Uso Comercial: O folhetim foi fundamental para o aumento da venda dos jornais, servindo como veículo de entretenimento e disseminação de cultura de massa.
O Romance Urbano do Romantismo Brasileiro, em sua essência, apresentava:
Característica | Detalhamento |
Temática Central | O amor como força de salvação e motor da ação, frequentemente idealizado. |
Melodrama | Aspecto dramático acentuado (lágrimas, sofrimento, emoção intensa) e enredo simples e estereotipado. |
Moralidade | Ênfase na divulgação de valores morais e virtudes. Obras buscavam edificar e instruir o leitor. |
Final Feliz | Prevalência do final feliz (geralmente o casamento por amor) como recompensa da virtude. |
Crítica Social Velada | Embora focado no amor, expõe costumes da elite burguesa carioca e faz críticas pontuais. |
É José de Alencar (1829-1877) quem, por consenso unânime dos críticos, firma o romance brasileiro como gênero literário de valor. Por isso, ele é considerado o pai do romance brasileiro.
Alencar não foi apenas um romancista; ele também foi dramaturgo, cronista, jornalista e político. Sua experiência como cronista (em Ao correr da pena, no Diário do Rio de Janeiro) foi vital, pois o transformou em um "arguto observador da sociedade fluminense". Essa observação detalhada da vida urbana forneceu a matéria-prima para a crítica social que seria aprimorada em seus romances.
Alencar tinha um projeto literário consciente e ambicioso, buscando abarcar os diversos aspectos do Brasil no tempo e no espaço. Ele sistematizou o que chamou de período orgânico da nossa literatura em três fases:
Fase Primitiva/Aborígene: Lendas e mitos da terra selvagem e conquistada. Exemplo: Iracema.
Fase Histórica: Representa o consórcio do povo invasor com a terra americana. Exemplo: O Guarani.
Fase da Independência/Infância da Literatura (Romance Urbano): Apresenta o mais característico da vida da nação e costumes urbanos, marcando o início da literatura brasileira independente. Exemplo: Senhora, Lucíola.
Obra | Ano de Publicação | Foco Temático |
Cinco Minutos | 1856 | Amor idealizado, narrador burguês sem conflito financeiro. |
A Viuvinha | 1857 | Pequena novela, publicada originalmente como folhetim. |
Lucíola | 1862 | Regeneração moral da prostituta; dualidade anjo-demônio. |
Diva | 1864 | Transformação de uma protagonista mimada/orgulhosa pelo amor. |
A Pata da Gazela | 1870 | Crítica ao materialismo; paixão extravagante (fetichismo do pé). |
Sonhos de Ouro | 1872 | Crítica social através da galeria de tipos da sociedade fluminense. |
Senhora | 1875 | Crítica veemente ao dote e ao casamento por interesse; poder feminino. |
Encarnação | 1877 | Distúrbios da alma humana; amor de um viúvo pela falecida (tema da segunda esposa). |
As obras urbanas de Alencar são notórias por sua intensa crítica ao poder corruptor do dinheiro e por dar protagonismo à figura feminina.
Senhora é um romance crucial por sua estrutura e tema. Ele ataca diretamente uma instituição social de longa data: o dote, o dinheiro dado à família do noivo pela família da nubente antes do casamento.
No centro do enredo está Aurélia Camargo, que, após herdar uma fortuna de mil contos de réis, decide se vingar de Fernando Seixas, o homem que a desprezara quando era pobre por buscar uma moça com dote.
O romance é uma análise do utilitarismo mercantilista que corrompia as relações pessoais. A intencionalidade do autor em questionar o dote é evidente, inclusive na estrutura da obra.
As quatro partes do romance espelham diretamente transações comerciais, reforçando a crítica de que o casamento era uma "empresa nupcial":
Primeira Parte — O preço: Aurélia, agora rica e senhora, usa seu talento para a matemática para orquestrar um plano: oferecer um dote de cem contos de réis para que Fernando se case com uma moça bela e desconhecida (que é ela mesma). Ele aceita, pressionado por dívidas.
Segunda Parte — Quitação: O narrador faz um retrospecto temporal, contando a história de Aurélia (a pobreza, o desprezo de Seixas) e o momento em que ela recebe a herança do avô, tornando-se rica.
Terceira Parte — Posse: Ocorre o casamento, mas Aurélia passa a humilhar Fernando, tratando-o como sua propriedade ou escravo ("traste indispensável às mulheres honestas"). Ele é exibido socialmente como marido, mas em particular, ela o reitera impiedosamente sua condição.
Quarta Parte — Resgate: Após meses de sofrimento, Fernando trabalha honestamente para juntar o valor, devolve o dote (corrigido com juros) e resgata sua honra e liberdade. A regeneração de Fernando e o amor verdadeiro se concretizam.
Aurélia Camargo é frequentemente citada como uma figura inovadora e de exceção:
Insubmissão: Alencar, com Senhora, reverteu o estereótipo da mulher frágil e submissa. Aurélia é dona de si e regente dos destinos.
Crítica Feminista (do ponto de vista da época): Alencar defendeu o sentimento contra os interesses materiais e, ao condenar o casamento por conveniência, atuou como um feminista, dadas as limitações da época. As heroínas de Alencar são as precursoras da emancipação feminina ao lutarem contra o casamento arranjado.
Linguagem: Aurélia usa de ironia ao falar sobre seu "estilo de ouro" (o dinheiro), zombando do sistema social em que "ter importa mais que ser".
Lucíola trata de um tema tabu para a sociedade do século XIX: a prostituição. A obra é uma defesa disfarçada da regeneração da prostituta, vista como vítima da sociedade.
A protagonista, Lúcia, é construída sob uma forte dualidade, que se reflete inclusive em seus nomes:
Lúcia (Cortesã): Representa o vício, o luxo e a sensualidade. O nome Lucíola significa "lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva". O narrador, Paulo, inicialmente só a vê como cortesã.
Maria da Glória (Mulher Pura): Seu nome de batismo, que ela resgata ao se regenerar, representa a pureza de alma, a santidade e o desejo de vida familiar.
A narrativa é, essencialmente, a busca por essa mulher pura, que estava "soterrada sob a cortesã infrene". Lúcia confessa a Paulo que só se tornou cortesã por necessidades financeiras urgentes, para ajudar a família doente.
Apesar da regeneração moral ser motivada pelo amor de Paulo, Alencar, obediente às convenções e moralismos da época, não permite o final feliz completo. Lúcia (Maria da Glória) morre no final do romance, no que é chamado de morte expiatória. Essa punição era necessária para que o romance não fosse considerado imoral por tratar do tema da mulher perdida.
Diferente de Senhora, que usa o narrador onisciente em terceira pessoa, Lucíola utiliza o foco narrativo em primeira pessoa (Paulo, o protagonista, narra a história em forma de cartas para uma senhora, G.M.). Este artifício de narração servia também para Alencar se afastar da crítica e da censura sobre o tema polêmico.
A preferência de Alencar pelo "sexo frágil" se manifesta na ênfase dada às personagens femininas e na defesa de seus interesses.
A mulher romântica urbana:
Idealizada vs. Real: Ela era moldada pelo registro masculino (fragilidade, doçura) e, muitas vezes, limitada ao ambiente doméstico ou a sociabilizações vigiadas. As jovens esperavam marido enquanto aprendiam "prendas" (piano, canto, francês), que eram vistas como instrumentos para agradar o futuro marido e garantir um bom partido.
Revolução em Alencar: As protagonistas de Alencar (Aurélia, Lúcia) se desviam desse padrão. Aurélia demonstra habilidade em matemática (saber masculino) e questiona a sociedade. Lúcia, como cortesã, alcança uma independência financeira que não era comum para mulheres de família. As heroínas lutam contra as convenções e a dominação patriarcal do casamento por interesse.
O Romance Urbano de Alencar, por vezes, era chamado de "a Comédia Humana de Alencar", em referência ao autor francês Honoré de Balzac. Alencar teve contato com a obra balzaquiana (assim como Dumas Filho, autor de A Dama das Camélias, obra que influenciou Lucíola).
Ponto de Contato (Balzac e Alencar) | Descrição |
Romance de Costumes | O espaço físico e social (a cidade) é um elemento vital para motivar a ação e descrever o caráter das personagens. |
Caracterização | Uso da técnica de correlação entre os traços fisionômicos (o corpo) e o caráter (a alma) dos personagens (ex: olhos negros/paixão; olhos azuis/pureza). |
Tempo Narrativo | Uso frequente de retrocessos temporais para explicar o passado das personagens e o encadeamento dos acontecimentos, conferindo um "tom fortemente histórico" à narrativa. |
Apesar da forte influência, Alencar diferia em um ponto crucial: Alencar era mais ingênuo e menos trágico que Balzac, pois acreditava na possibilidade do homem ser feliz e no triunfo final do sentimento amoroso sobre as paixões destrutivas.
O Romantismo de Alencar é uma fase de transição importante para o Realismo. Machado de Assis (nosso maior escritor) se valeu das conquistas alencarinas, como a análise sociológica da vida urbana e as sugestões psicológicas.
Entretanto, as obras de Alencar (como Senhora) ainda demonstravam uma visão de mundo ordenada, com contraste marcante entre o bem e o mal (maniqueísmo).
A Ruptura (Exceção de Estilo): O Realismo que se iniciaria com a segunda fase de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881) faria uma crítica à sociedade mais profunda, utilizando a ironia e o ceticismo para desmascarar a hipocrisia das elites. O foco narrativo de Machado, o "defunto-autor", romperia com as amarras sociais e a idealização romântica, narrando sem preocupação jurídica. Machado se aprofunda no intimismo e nos "segredos da alma humana".
Dessa forma, enquanto Alencar era um "moralista intransigente" que atacava a força dissolvente do dinheiro, Machado de Assis, posteriormente, utilizaria a ironia como tática de ação para combater as "verdades absolutas" das elites.
O dinheiro é a mola da ação romanesca. Ele é o principal motor dos conflitos e das articulações amorosas. O Romance Urbano critica veementemente o casamento por conveniência (por interesse financeiro) em detrimento do casamento por amor. Em Senhora, isso é maximizado pelo questionamento da prática do dote, onde o dinheiro dita os amores.
A regeneração é um tema romântico que trata da transformação moral de um personagem, geralmente motivada pelo amor.
Em Lucíola, é a regeneração moral de Lúcia (prostituta) em Maria da Glória.
Em Senhora, é a regeneração de Fernando Seixas, que abandona sua ambição e recupera sua honra.
Em Diva, é a transformação de Emília, que abandona o orgulho e se torna amorosa.
A principal crítica é dirigida à sociedade fluminense por seu materialismo, que corrompe as relações humanas e sociais. Alencar condena o utilitarismo mercantilista, a hipocrisia e a artificialidade da elite que copiava modelos europeus.
Alencar é o "pai do romance brasileiro" porque consolidou o gênero como de valor literário no país, ultrapassando os precursores. Ele utilizou a análise sociológica da vida urbana, inseriu sugestões psicológicas e, sobretudo, desenvolveu um vasto projeto literário focado em construir uma identidade nacional, abrangendo o Brasil em suas diferentes paisagens (urbana, indianista, regionalista).
Críticos contemporâneos, como Antonio Dimas, apontam que Senhora é um marco por reverter o estereótipo da mulher submissa, abrindo caminho para a emergência de figuras femininas determinadas na literatura posterior (como Capitu ou Gabriela). O romance, ao abordar o hibridismo social brasileiro, sugere que há um imbricamento entre a realidade e a formalização do enredo, antecipando lógicas observadas apenas em ficções posteriores.