Vivemos na era do streaming, onde maratonar séries (binge-watching) e esperar ansiosamente pelo próximo episódio se tornou um hábito cultural. No entanto, esse fascínio por narrativas seriadas não é exclusivo do século XXI. No século XIX, muito antes de plataformas digitais como Netflix ou HBO Max, existia um formato literário que causava a mesma dependência e fervor: o Romance de Folhetim.
O folhetim não foi apenas uma forma de contar histórias, mas um fenômeno que revolucionou a imprensa, a literatura e a maneira como o público consumia arte. Seu legado é tão duradouro que ele é considerado o modelo original de obras exibidas diariamente na televisão, como minisséries e, principalmente, telenovelas.
O folhetim (do francês le feuilleton) é uma narrativa literária de ficção, seriada e sequenciada, publicada em periódicos (jornais e revistas) em capítulos regulares.
O termo folhetim tem origem francesa (le feuilleton) e, originalmente, designava a seção física do jornal, geralmente localizada no rodapé da primeira página, separada do restante do corpo do jornal por uma linha.
Inicialmente, esta seção de rodapé era utilizada para publicar textos de entretenimento variados, como charadas, receitas culinárias, crítica literária, ou artigos avulsos (o chamado folhetim-crônica).
Apenas mais tarde, o termo passou a se referir especificamente ao romance folhetinesco, a obra de ficção publicada em partes sequenciadas.
A característica mais distintiva do folhetim é a serialização. Em vez de comprar um livro completo de uma vez, o leitor acompanhava a história "em fatias" diárias ou semanais. Isso transformava a leitura em um ritual coletivo e criava uma forte fidelidade do público à obra.
O folhetim figura como a ficção moderna destinada ao grande público, ou seja, à massa. Ele popularizou a leitura e democratizou o acesso à literatura.
O Romance de Folhetim surgiu na França, no início do século XIX, durante a década de 1830. Sua criação está diretamente ligada ao desenvolvimento da imprensa e a uma nova lógica capitalista de produção e consumo cultural.
O marco zero da publicação seriada de ficção é 1836, quando o escritor e jornalista francês Émile de Girardin, fundador do jornal La Presse, idealizou a publicação de ficção em partes sequenciadas.
Girardin tinha objetivos primordialmente econômicos e editoriais:
Redução de Custos: A publicação seriada visava a redução dos custos de impressão.
Aumento da Venda de Jornais: Ao oferecer um conteúdo viciante, o jornal garantia que os leitores retornassem no dia seguinte ou na próxima semana para comprar a continuação, aumentando drasticamente as tiragens.
Início da Publicidade: La Presse também introduziu a prática da publicidade na França, e o folhetim se tornou um produto cultural para o acúmulo de capital, utilizando a literatura para aumentar as vendas do jornal.
A primeira obra de ficção seriada a ser publicada foi a novela picaresca espanhola, Lazarillo de Tormes (1836). Em um ano, a tiragem do La Presse saltou de 70.000 para 200.000 exemplares, demonstrando o êxito imediato do formato.
O folhetim ascendeu devido a uma série de fatores sociais e tecnológicos no século XIX:
Aumento da Alfabetização: A democratização educacional e o aumento da taxa de alfabetização, primeiro nas classes burguesas e depois nos segmentos populares, criou um público leitor crescente.
Barateamento dos Periódicos: O desenvolvimento tecnológico permitiu a produção jornalística e a distribuição de livros (e jornais) a um custo mais baixo.
Lazer e Mudança de Gosto: A diminuição da jornada de trabalho e a emergência da ideia de lazer impulsionaram a demanda por entretenimento acessível.
O formato de folhetim inverteu a ordem editorial: devido à grande aceitação do público, muitos autores passaram a publicar suas obras (em livro) somente depois de analisar a aceitação do texto publicado no formato folhetinesco.
Para garantir a fidelidade do leitor e o sucesso comercial, o folhetim desenvolveu técnicas narrativas específicas que são cruciais para a análise literária e muito cobradas em concursos, especialmente o uso do gancho.
A técnica mais importante do folhetim é o cliffhanger (gancho). O cliffhanger é um recurso narrativo que consiste em deixar o leitor em suspense até o próximo segmento (capítulo ou publicação). Essa técnica exige dos escritores a elaboração de enredos atraentes, que prendam a atenção.
A etimologia da palavra cliffhanger remete à imagem do protagonista (ou alguém que ele precisa salvar) em perigo iminente de morte, como, literalmente, "prestes a cair de um penhasco".
Alexandre Dumas dominava essa arte, terminando dúzias de capítulos com um final de tirar o fôlego, deixando os leitores na expectativa semana após semana. A serialização tornava a leitura incrivelmente viciante.
O autor George R.R. Martin, criador de As Crônicas de Gelo e Fogo (Game of Thrones), utiliza o cliffhanger de forma sofisticada, muitas vezes deixando o leitor no auge da tensão de um personagem, mas forçando-o a ler capítulos de outros personagens (capítulos "ruins" ou "neutros") até que a tensão inicial seja resolvida, garantindo a continuidade da leitura.
É importante notar que nem todos os capítulos devem terminar com cliffhangers, para evitar que o leitor se acostume e se torne imune ao suspense.
O Romance de Folhetim possuía uma relação simbiótica com o leitor, sendo frequentemente considerada uma literatura subjugada às regras da indústria e à opinião do público.
Adaptação ao Receptor: Diferentemente do romance tradicional focado no emissor, o romance-folhetim focava no receptor. Publicado de capítulo em capítulo, podia sofrer alterações em sua história conforme a receptividade dos leitores.
Esticamento da Trama: Quando o público interferia (por meio do aumento ou diminuição das vendas), os autores frequentemente "esticavam" a obra, inserindo novas personagens, tramas e histórias paralelas. Isso também beneficiava financeiramente os autores, que eram pagos por linha ou por tempo de publicação.
Tipologia e Temas: O folhetim costumava apresentar mais diálogos e, frequentemente, tinha a figura de um herói que se movia em um mundo de tensão social. Havia um uso constante de contrastes maniqueístas: bem versus mal, felicidade versus decepção, baixa sociedade versus alta sociedade. O romance folhetinesco, por sua natureza popular e comercial, tendia a favorecer as estéticas médias.
Muitas obras aclamadas como clássicos universais foram publicadas pela primeira vez como folhetins.
O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas é frequentemente citado como o exemplo máximo do poder do romance serializado.
Publicação: Foi publicado pela primeira vez como folhetim entre 1844 e 1846.
Estrutura Viciante: Dumas liberava aos poucos as tramas de vingança, revelações de identidade, reviravoltas complexas e conexões perdidas ao longo de dúzias de capítulos. O autor tinha um senso incrível de timing, sabendo exatamente onde terminar um capítulo para deixar o leitor desesperado pelo próximo. A obra é emocionante, divertida e observadora.
Temas e Gênero: A história de Edmond Dantès, o herói injustiçado que retorna para se vingar, é um épico emocional. Foi comparada a uma mistura de reality show, romance policial, drama pop de streaming e novela de época.
Outras Obras de Dumas: Alexandre Dumas também publicou Os Três Mosqueteiros (1844) como folhetim.
A popularidade de Dumas e seu estilo cativante demonstram que, mesmo nascendo da lógica editorial do lucro, o folhetim poderia alcançar um alto nível de excelência literária.
Charles Dickens (Inglaterra): Publicou obras como Oliver Twist (1837–1839) e David Copperfield (1849–1850) em capítulos, muitas vezes ajustando a trama conforme a reação do público. Dickens era frequentemente pago por palavra, o que explica em parte a extensão e o uso constante de cliffhangers em cada capítulo, seguido de "enrolação" na abertura do próximo.
Victor Hugo: Seu romance Os Miseráveis (1862) foi publicado em folhetim.
Eugène Sue: Seu folhetim Os Mistérios de Paris foi notável por gerar uma conscientização do público sobre problemas graves da sociedade capitalista do século XIX, especialmente injustiças sociais. Essa abordagem social gerou tanta repercussão que o gênero chegou a ser suspenso por Luís Napoleão Bonaparte em 1851 para coibir conteúdos politicamente explosivos.
O gênero folhetim chegou ao Brasil por intermédio da burguesia brasileira, que era leitora assídua das produções francesas. Fez sucesso na segunda metade do século XIX e foi crucial para a consolidação da imprensa e da literatura nacional.
O folhetim foi fundamental no Brasil, pois:
Veículo Principal de Divulgação: Para muitos autores, o jornal era o principal veículo para divulgar suas obras, artigos e críticas.
Consolidação do Romance Brasileiro: A ficção da segunda metade do século XIX foi essencialmente difundida através do folhetim.
Jornalismo Literário: O folhetim foi o principal instrumento da junção entre jornalismo e literatura no Brasil, em um período (1789-1900) em que os fins econômicos estavam em segundo plano, e o jornal tinha fins pedagógicos e de formação política.
Vários dos maiores nomes da literatura brasileira utilizaram o folhetim para lançar suas obras:
José de Alencar: Considerado um dos precursores.
O Guarani (1857): Publicado em formato de folhetim no Diário do Rio de Janeiro. O autor, segundo biógrafos, escrevia cada capítulo diariamente de acordo com o imenso impacto da trama no público leitor.
Cinco Minutos (1856): Também publicado no Diário do Rio de Janeiro.
Machado de Assis: Seguiu o rastro do novo gênero.
Quincas Borba (1886-1891): Publicado na revista A Estação.
Outros Romances: Publicou A Mão e a Luva (1874) e Helena (1876) no rodapé do jornal O Globo.
Contos e Crônicas: Machado de Assis também publicou contos famosos como O Alienista em formato de folhetim e contribuiu significativamente para o amadurecimento do gênero crônica, que nasceu do folhetim.
Joaquim Manuel de Macedo:
A Moreninha (1844): Publicado em folhetim, é considerado o exemplo de folhetim mais popular da história do Brasil, sendo um sucesso de vendas.
A Carteira do meu tio (1845): Publicado na Marmota Fluminense.
Manuel Antônio de Almeida:
Memórias de um Sargento de Milícias (1852): Publicado nos rodapés do Correio Mercantil, sendo a data de início da publicação (1852) sugerida como o marco inicial do jornalismo literário brasileiro por alguns estudiosos.
Apesar do sucesso estrondoso dos folhetins em jornais, as vendas dos seus respectivos livros, publicados logo depois, eram frequentemente mínimas. Os capítulos em jornais "engoliam" a forma corrida do romance no Brasil. Isso se deve em parte ao alto custo da edição de livros em volume na época e à prevalência do consumo via periódico.
O auge do folhetim ocorreu no final do século XIX, quando foi publicado à exaustão para aumentar a venda de jornais. Contudo, o gênero literário em sua forma original de rodapé jornalístico chegou ao fim por volta de 1914, devido a fatores como o advento da Primeira Guerra Mundial e o surgimento do cinema.
Apesar do seu declínio nos jornais, a linguagem folhetinesca e sua estrutura seriada sobreviveram e migraram para outras mídias, tornando-se o modelo para o entretenimento de massa moderno.
A estrutura narrativa do folhetim é indispensável para garantir o sucesso das produções de mídia em série.
Radionovelas: O Rádio, surgindo como novo veículo de comunicação, aproveitou a linguagem folhetinesca, dando origem às radionovelas, com grande demanda por autores do gênero.
Telenovelas e Minisséries (Foco em Concursos): A Televisão deve sua afirmação ao formato folhetinesco. As telenovelas, minisséries e séries utilizam a linguagem narrativa do folhetim, especialmente a técnica de utilização de ganchos (cliffhangers) ao final dos capítulos e a abordagem de temas populares e polêmicos, buscando a fidelidade do público.
A ascensão do folhetim marcou a inserção da literatura naquilo que, mais tarde, seria chamado de Cultura de Massa.
A Indústria Cultural – conceito desenvolvido pelos filósofos da Escola de Frankfurt (Theodor Adorno e Max Horkheimer) – define a produção massiva e capitalista de arte. O romance-folhetim foi crucial nesse processo, pois:
Produto de Lucro: Tornou-se um produto cultural para o acúmulo de capital, utilizando a literatura para aumentar as vendas do jornal (meio de comunicação de massa).
Adaptação ao Mercado: Seu conteúdo, forma e estilo estavam sujeitos à adequação que dependia da opinião e do acompanhamento do maior número de leitores.
Homogeneidade: Para alcançar a massa, a produção é uniformizada, buscando contentar o maior número de grupos, independentemente de faixa etária ou classe econômica, promovendo a homogeneidade do gosto. O escritor, nessa perspectiva, pode ser visto como um "operário" sujeito às regras do mercado.
Apesar de ser visto por alguns como "literatura menor" ou "mediana" por ter objetivos mercadológicos, o folhetim ajudou a fomentar uma cultura de produções ficcionais e permitiu que grandes obras fossem veiculadas e, eventualmente, incorporadas ao cânone literário.
A estrutura seriada do folhetim continua viva em novos formatos digitais, provando a atemporalidade da necessidade humana por narrativas contínuas.
Web Novels: As web novels, muito populares em várias partes do mundo, são essencialmente a mesma coisa que o folhetim do século XIX, adaptadas à mídia digital.
Streaming: O streaming é frequentemente chamado de o "streaming do século XIX" ou "novela das antigas", mantendo a mesma lógica de serialização, suspense e busca por fidelidade.
Aqui, abordamos dúvidas comuns sobre o tema.
Originalmente, o termo folhetim designava o espaço no rodapé do jornal.
O Folhetim-Crônica (ou coluna) era a publicação de uma crônica, um artigo avulso ou crítica literária nessa seção.
O Romance Folhetinesco (ou Romance de Folhetim) era a publicação de um romance de ficção em capítulos sequenciados, nesse mesmo espaço.
Com o tempo, o Folhetim-Crônica deu origem à crônica moderna, que se tornou um texto curto, leve, com aspectos de oralidade, relatando acontecimentos cotidianos, como faziam Machado de Assis e José de Alencar.
O folhetim foi fundamental para o jornalismo literário brasileiro. No entanto, sua penetração na sociedade brasileira foi limitada em comparação com a Europa. O Censo de 1872 revela que o total de leitores no Brasil era irrisório (apenas 22,80% da população livre sabia ler), o que dificultava o acesso da grande massa à leitura e ao folhetim. Na Europa, a taxa de alfabetizados era elevada, o que garantiu o êxito do gênero.
Apesar disso, o suporte jornalístico favoreceu a leitura em voz alta, uma prática comum para diminuir a "pobreza cultural" e permitir que pessoas analfabetas tivessem contato com o texto, embora isso não garantisse uma penetração de fato no conjunto mais amplo da sociedade.
Não. Os primeiros textos folhetinescos eram frequentemente fragmentações e adaptações de livros (romances) já existentes a serem publicados no jornal. Escritores brasileiros, como Machado de Assis, chegaram a fazer traduções apressadas de folhetins franceses, como Os trabalhadores do mar de Victor Hugo, quase simultaneamente ao lançamento na França.
A crítica, baseada nos estudos da Escola de Frankfurt (Adorno e Horkheimer), reside no fato de que, ao se tornar um produto de mercado focado no lucro, a arte renega sua própria autonomia. A literatura, ao buscar a fidelidade e o gosto do leitor em massa, tende à padronização e à diminuição da qualidade artística (estética e conteúdo) em favor do entretenimento, que oferece um "escape" ou um "apaziguamento" das pressões capitalistas vivenciadas pela sociedade.
Contudo, é inegável que, mesmo surgindo da lógica capitalista, o folhetim produziu obras de alta qualidade que resistiram ao tempo e se tornaram clássicos, o que relativiza a ideia de ser apenas uma literatura mediana.
A seguir, aprofundamos a compreensão da influência do Folhetim na criação de outros gêneros e na história do jornalismo.
O Romance de Folhetim foi o principal fator para a união da Literatura e do Jornalismo, um fenômeno universal no século XIX. Essa junção criou o jornalismo literário.
No Brasil, os jornais da época não tinham como prioridade o lucro, mas sim a formação política e pedagógica. A participação dos escritores (como Alencar, Machado, Macedo) nas redações, publicando artigos, folhetins e crônicas, tornou o jornalismo e a literatura indissociáveis.
A consolidação do jornalismo literário no Brasil (c. 1852 a 1907) foi fundamental para a disseminação do gosto pela leitura.
O folhetim na França passou por fases distintas que demonstram a sua adaptabilidade e as pressões políticas da época:
Primeira Série (1836–1850): Marcada pela busca de um jornal mais acessível e pela consolidação das especificidades do gênero. Escritores como Alexandre Dumas e Eugène Sue se destacam. Esta fase inclui a produção de romances com críticas sociais, como Os mistérios de Paris.
Suspensão e Segunda Série (1851–1871): Após a suspensão pelo governo, o folhetim foi esvaziado de conteúdo político. O foco se volta para a aventura pela aventura.
O Rocambole: Surge o personagem ícone desta fase, Rocambole, um anti-herói envolvido em aventuras audaciosas e protetiforme, que era frequentemente morto pelo autor (Ponson du Terrail) e ressuscitado a pedido do público.
Terceira Série (Pós-1871): Após a Guerra Franco-Prussiana, o folhetim retorna, retratando os "dramas da vida" e os "romances das vítimas". O foco se torna mais conservador, abordando temas como a mulher vítima, prostituta, seduzida, ou mãe solteira, buscando a identificação dos leitores com aspectos mais reais.