"São Bernardo" é um romance fundamental do escritor alagoano Graciliano Ramos, publicado em 1934.
A obra é um dos maiores representantes da segunda fase do Modernismo brasileiro (ou Geração de 30), um período marcado por um forte caráter regionalista. Nesses anos conturbados (décadas de 1930 e 1940), com crises econômicas e políticas globais, os artistas se voltaram intensamente para as temáticas sociais. No Brasil, isso se manifestou na literatura pela denúncia dos problemas do Nordeste, como a seca, a miséria e a ignorância.
Entretanto, embora o sertão e as relações semi-feudais da fazenda sirvam de pano de fundo, Graciliano Ramos transcende o mero regionalismo ao adicionar uma densa carga psicológica e uma profunda crítica ao capitalismo.
Autor: Graciliano Ramos.
Obra: São Bernardo (1934).
Gênero: Romance Social e Psicológico.
Narrador: Narrador-personagem (Paulo Honório).
Tema Central: Ascensão e decadência de Paulo Honório, o sentimento de propriedade, e a perda da humanidade.
O estilo de Graciliano Ramos é uma das características mais cobradas em provas e essencial para entender a obra.
O estilo do autor é descrito como sóbrio, muitas vezes rude. Graciliano Ramos buscava a precisão e a capacidade de transmitir sensações com o mínimo de metáforas.
Ele próprio comparou seu processo de escrita ao trabalho das lavadeiras de Alagoas, que torcem a roupa até não pingar uma só gota; para ele, a palavra não foi feita para enfeitar, mas sim para dizer.
A linguagem de "São Bernardo" é concisa, seca e objetiva, sem rodeios. Ele eliminava tudo o que não era essencial, como descrições paisagísticas excessivas ou a eloquência tendenciosa. Essa sobriedade é fiel à personalidade rude e seca de Paulo Honório.
O romance é um dos maiores exemplos da função metalinguística na literatura. Isso ocorre porque o narrador-personagem, Paulo Honório, expõe o próprio ato de escrever e o processo de produção do livro.
Dúvida Comum: Por que Paulo Honório decide escrever o livro? Paulo Honório decide narrar sua história como uma forma de expurgar a solidão e a tristeza após a morte de Madalena, buscando dar um sentido para sua vida e narrar sua própria derrota. Após dois anos da morte de Madalena, e com a casa quase deserta, a vida se tornou insuportável, e ele sentiu a necessidade de escrever.
No início da escrita, Paulo Honório, que se confessa um homem de "poucas letras" e sem instrução para escrever um romance, imaginou construir o livro pela divisão do trabalho:
Padre Silvestre: ficaria com a parte moral e as citações latinas.
João Nogueira: aceitou a ortografia e a sintaxe.
Arquimedes: ficaria com a composição tipográfica.
Lúcio Gomes de Azevedo Gondim: convidado para a composição literária.
Paulo Honório: traçaria o plano, introduziria rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o seu nome na capa.
Exceção e Dúvida Comum: O resultado desse projeto foi um "desastre". Paulo Honório não aceitou escrever na "língua de Camões" (linguagem rebuscada) e decidiu seguir sozinho, à sua própria maneira, de forma rústica, para tratar de uma "alma agreste". Esse fracasso denuncia a falta de comunicação e a inabilidade dos envolvidos, insinuando o fracasso do princípio positivista de que "cada um faz a sua parte".
A estrutura da narrativa em primeira pessoa é complexa, sustentando a densa carga psicológica do protagonista, o que a torna um tópico avançado e frequente em exames.
Ao contrário de outras obras regionalistas de Graciliano (como Vidas Secas, narrada do ponto de vista do oprimido), "São Bernardo" é narrado do ponto de vista do opressor: Paulo Honório.
O narrador-personagem conta a história de sua própria vida, desde a ascensão financeira até a decadência humana. O leitor é convidado a entrar na mente do protagonista, mas sob o risco de ter a visão do mundo manipulada pelo narrador.
O romance se desenvolve em dois planos temporais distintos, que são essenciais para a compreensão da fragmentação psicológica de Paulo Honório:
Tempo do Enunciado (Passado/Pretérito): Refere-se à história narrada, ou seja, a trajetória de Paulo Honório, sua vida de ambição, a conquista de São Bernardo e o casamento com Madalena.
Função: Mostrar as ações e o caminho que o levou à prosperidade e, subsequentemente, à solidão.
Tempo da Enunciação (Presente): É o momento da escrita, quando Paulo Honório está, dois anos após a morte de Madalena, na fazenda decadente, refletindo sobre o que aconteceu.
Função: Revelar a derrocada moral e material, a solidão, a culpa. Ele se debruça sobre seu passado para tentar entender a si mesmo e o mundo.
Essa constante transição entre passado e presente cria um efeito estético de distanciamento, expondo o caráter objetivo e racional (e depois fragmentado) do protagonista.
Dúvida Comum: Como um homem rústico, que se diz ignorante, pode escrever um texto tão bem elaborado? Críticos frequentemente apontam uma aparente inverossimilhança de Paulo Honório como narrador, dado o contraste entre o texto sofisticado e seu "imaginário escritor" inculto.
A inverossimilhança, no entanto, é propositalmente empregada por Graciliano Ramos. Ela confere à obra um estatuto de ilusão de realidade/verdade. A linguagem, apesar de não ser tosca, é seca e objetiva, refletindo a personalidade de Paulo Honório. Além disso, o narrador, no ato de escrever, está em um momento de reflexão e autocrítica, o que naturalmente eleva a qualidade de sua expressão, ainda que ele mantenha a "linguagem de caboclo nordestino". O objetivo não é a fidelidade documental, mas sim a significação humana e o valor literário.
Paulo Honório é o eixo central do romance, uma figura complexa que encarna as contradições do Brasil na fronteira entre o arcaico e o moderno.
A trajetória de Paulo Honório é a de um homem que, de "guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado", ascende a grande fazendeiro. Ele não mediu esforços para possuir a fazenda São Bernardo, sendo caracterizado como ambicioso e cruel. Ele aprendeu que só se respeita quem é poderoso, o que justifica sua ganância em enriquecer e mandar.
Ele é frequentemente classificado como um anti-herói, um sujeito "problematizado" que resiste às determinações da sociedade.
Contradição e Dualidade:
Ele atravessa a transição do indivíduo tradicional (feudal, preso às raízes rurais) para o moderno (capitalista, burguês empreendedor).
Essa modernização é conservadora: ele traz o progresso técnico-científico para a zona rural, mas suas relações de trabalho são arcaicas, agindo como um senhor de escravizados. Ele usa a violência e chicoteia funcionários.
O cerne da personalidade de Paulo Honório é o sentimento de propriedade. Este sentimento o transcende e é a força em função da qual ele vive.
A lógica que rege sua conduta é o utilitarismo: "Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro". Para ele, o mundo é uma enorme coleção de mercadorias.
Este conceito é a reificação, onde as relações sociais perdem seu caráter humano para se transformarem em simples relações quantitativas ou em propriedade das coisas.
Tudo é capital: Ele vê a construção da capela e da escola visando a interesses e como um "capital".
Pessoas como mercadoria: Ele avalia pessoas em termos de "valor de troca", tratando até mesmo a Margarida, que o criou, como um pacote.
O Casamento como Negócio: Ele se casou unicamente para "preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo". Ele via a escolha da esposa pela ótica da zootecnia, comparando a procriação de filhos à de animais.
O sucesso de Paulo Honório na conquista material é o que, ironicamente, o leva à destruição moral.
No tempo da enunciação, ele se vê "arrasado" e "aleijado", reconhecendo que a "profissão" (a vida de proprietário) lhe deu qualidades ruins, inutilizando-o. A decadência material e a fragmentação psicológica são evidentes.
Ele tenta culpar o ambiente ("culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste"), mas no fundo, seu relato é uma confissão de sua solidão e de que "consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê!".
Madalena é a personagem chave que instaura o desequilíbrio na narrativa e catalisa a crise de Paulo Honório. Ela representa a oposição direta aos valores reificados do protagonista.
Madalena, uma professora, possui um espírito humanista e está na esfera do "ser", preocupada com a dignidade humana, em contraste direto com o foco de Paulo Honório no "ter".
Ela se recusa a admitir os comportamentos brutais do marido. Seus atos eram de partilha e buscavam a ruptura com o individualismo. Ela questionava o salário dos funcionários e as atrocidades cometidas em nome do dinheiro.
Madalena é a heroína que encarna a subversão e a irrupção da ordem incorporada pelo marido. Ela se confronta com o protagonista em uma luta que extrapola as relações de gênero, abrangendo posicionamentos políticos e ideológicos.
Dúvida Comum/Conteúdo Avançado: O ciúme de Paulo Honório por Madalena é, na verdade, uma expressão da patogênese do sentimento de propriedade. O que o torna furioso não é apenas a suspeita de infidelidade amorosa, mas sim o fato de Madalena ser uma inimiga de classe, afeita a ideias comunistas (reformas sociais, materialismo) que confrontavam seu direito de posse. Ele via a inteligência dela como uma ameaça à sua superioridade masculina e à hierarquia da propriedade.
A vida de Madalena se torna um inferno ao ser tolhida e reprimida. Seu ato final, o suicídio, é o clímax da tragédia.
Exceção e Análise Profunda: O suicídio de Madalena é visto como um ato político e de resistência. Ao tirar a própria vida, ela derrota Paulo Honório, colocando um ponto-final na sua capacidade de reificá-la, ou seja, de transformá-la em mais um objeto. Ela se liberta do jugo masculino, desmontando o poder do marido.
A morte dela é a ruína de Paulo Honório, pois ele perde o sentido de seus objetivos. Ele se sente "melancolicamente acuado pelos fantasmas de um mundo que acabou".
"São Bernardo" é considerado um brilhante exemplo de tragédia moderna. Na concepção de Raymond Williams (crítico citado nas fontes), a tragédia moderna não se deve a forças metafísicas (Deus, Destino), mas sim às forças concretas e humanas da sociedade de classes.
O "acidente" (o suicídio de Madalena) liga-se profundamente ao sentido geral dos valores da sociedade capitalista. Paulo Honório é a personificação da lei fundamental do capital, impessoal e irrefreável. Madalena, ao contrário, é a heroína trágica que se rebela contra o princípio social da ordem.
A obra elabora um discurso de alteridade, ou seja, a relação e o confronto entre o eu e o outro. Paulo Honório, o narrador masculino, não quer ceder o lugar central da enunciação ao sujeito feminino.
As relações de gênero são produzidas em um universo de valores fragmentados, mas a mulher continua submetida ao homem, assim como o homem é subjugado ao capital.
Madalena desafia o regime machista/patriarcal e o domínio masculino, mas a dominação de gênero persiste, pois o homem, mesmo com crise de identidade, detém o poder da palavra. A figura da mulher na obra, vista pela ótica machista, é inicialmente estereotipada (Rosa, Germana), enquanto Madalena é vista como um perigo por ser instruída.
O romance critica as contradições peculiares do capitalismo brasileiro. O país modernizou-se tecnicamente (Paulo Honório leva o progresso à fazenda), mas não abandonou a estrutura sócio-histórica escravagista e feudal. Paulo Honório é o símbolo dessa "modernização conservadora".
O livro insinua os levantes contra o feudalismo das oligarquias rurais e o capitalismo industrial, especialmente na voz de Madalena, que, questionada sobre a revolução, responde: "Seria magnífico. Depois se endireitava tudo".
O romance utiliza a intertextualidade como recurso metalinguístico:
A Bíblia: Mencionada como fonte de aprendizado de Paulo Honório, e utilizada para justificar o poder.
Tradição Literária: Referência à "língua de Camões" e a outros autores, como Machado de Assis (em Memórias Póstumas).
O monólogo interior e o fluxo de consciência de Paulo Honório são cruciais para a análise psicológica. No final, ele passa por uma auto-análise crítica, admitindo falhas e omissões.
A solidão após a morte de Madalena o leva à angústia e ao desespero. Ele se autodescreve com deformidades monstruosas, como um lobisomem, uma metáfora que ele cria para si mesmo devido à sua desumanização provocada pela ambição cega e o sentimento de propriedade. O homem dinâmico se torna um homem derrotado, passivo, vulnerável à subjetividade.
A adaptação mais notável de "São Bernardo" é o filme homônimo de Leon Hirszman (1973).
Hirszman, filiado ao Partido Comunista, buscou transpor o texto escrito em arte cênica, revelando gestos e emoções que antes eram apenas imaginados.
O filme se comportou como um músico que interpreta a melodia de outro, sendo que o roteiro foi baseado no livro e no ensaio de Antonio Candido, Tese e Antítese.
O ator Othon Bastos, que interpreta Paulo Honório, domina a narrativa com sua voz over (recurso cinematográfico que remete à narração em primeira pessoa), controlada e dominadora.
A adaptação enfatiza os mandos e desmandos do proprietário, destacando a temática da opressão.
Dúvida Comum | Resposta Direta |
Qual é o foco narrativo de São Bernardo? | O romance é narrado em primeira pessoa por Paulo Honório (narrador-personagem), o que confere densidade psicológica à obra. |
O que significa a expressão "tempo do enunciado" e "tempo da enunciação"? | O tempo do enunciado é o passado (a história de ascensão de Paulo Honório); o tempo da enunciação é o presente (o momento em que ele escreve e reflete sobre sua solidão). |
Qual é o principal traço de Paulo Honório? | O sentimento de propriedade (reificação), que o domina a ponto de ele ver tudo (pessoas, casamento, projetos) como capital ou mercadoria. |
Qual o motivo do casamento entre Paulo Honório e Madalena? | O desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo, tratando o casamento como um negócio, não por amor. |
Por que Madalena se suicida? | Ela se sente oprimida, reprimida e infeliz, sendo seu suicídio um ato de resistência, uma recusa em se tornar mais uma propriedade de Paulo Honório. |
Paulo Honório assume sua culpa? | Em partes. Ele assume que seu modo de vida o "inutilizou" e o tornou brutal, mas frequentemente joga a culpa no "ambiente" ou na sua "alma agreste". |
Qual a relação do ciúme com a propriedade? | O ciúme é a expressão consciente da patogênese do sentimento de propriedade. Paulo Honório se enfurece com a infidelidade intelectual/moral de Madalena, que ameaçava sua ordem capitalista com ideias comunistas. |