A Literatura Fantástica no Brasil é um campo rico e complexo, que se manifesta por meio de diversos subgêneros, como a fantasia, a ficção científica e o horror. Embora o Brasil tenha sido historicamente criticado por uma suposta "falta de tradição" nesses gêneros, devido à predileção da crítica pelo realismo, a produção nacional de cunho fantástico tem raízes profundas, desde o Romantismo no século XIX, e vive um momento de proliferação e reconhecimento no cenário contemporâneo.
Para compreender a trajetória da literatura fantástica brasileira, é essencial primeiro dominar os conceitos teóricos que definem esse campo. A literatura fantástica é caracterizada pela exploração de elementos sobrenaturais, extraordinários ou surreais.
O fantástico é tudo aquilo que extrapola a realidade e contraria as leis da física. Em um texto literário, o acontecimento extraordinário é mesclado a elementos reais, provocando no leitor e no personagem uma sensação de estranheza e hesitação diante do inexplicável.
As principais características do texto fantástico incluem:
Mistura de elementos reais com sobrenaturais.
Fatos impossíveis (que contrariam fenômenos naturais).
Caráter ilógico, surrealista ou nonsense.
Valorização do mistério.
O ensaio Introdução à literatura fantástica, de Tzvetan Todorov, é um marco nos estudos do gênero e serve como base para a maioria das discussões acadêmicas sobre o tema, mesmo que seja para contestá-lo. Todorov define a essência do fantástico pela hesitação.
Gênero/Modo | Condição Teórica | Explicação |
O Fantástico (Stricto sensu) | Hesitação | A hesitação entre uma explicação natural e uma sobrenatural se mantém até o final da narrativa. É o ponto de intersecção entre o real e o imaginário. |
O Estranho | Explicação Natural | A hesitação é resolvida, e o evento insólito possui uma explicação fundada na realidade (por exemplo, ilusão, loucura ou coincidência). O estranho está presente no romance policial e de mistério. |
O Maravilhoso | Explicação Sobrenatural | A hesitação é resolvida, e o leitor/personagem aceita que o evento segue as leis de um mundo imaginário, diferente do nosso. O espaço narrativo é distante da experiência comum, regido por suas próprias regras. |
Importante para Concursos: Na perspectiva de Todorov, a hesitação precisa ser mantida até o fim. Caso contrário, tem-se apenas um "efeito fantástico" e não o gênero completo. Entretanto, críticos como Filipe Furtado e Irene Bessière trabalham com a noção mais ampla de Modo Fantástico ou Arquigênero, que abrange todas as narrativas que se ocupam da fantasia em sentido lato (gótico, terror, ficção científica, realismo mágico, etc.).
Uma dúvida comum e um tema recorrente em análises é: por que a literatura fantástica no Brasil tem uma difusão mais restrita, especialmente em comparação com outros países latino-americanos?
A crítica literária aponta que, embora a produção exista desde o século XIX, ela foi constantemente marginalizada e vista como um campo exíguo. Essa invisibilidade decorre de fatores históricos, culturais e estruturais:
Desde o século XIX, com o Romantismo, o sistema narrativo dominante nas Américas, incluindo o Brasil, foi o real-naturalista. A intelectualidade da época firmou um compromisso de usar a literatura para afirmar a identidade brasileira e inventariar o passado nacional.
Essa busca por identidade implicou o culto do documental, do verídico e do factual.
Essa tendência realista continuou forte no século XX com o realismo social e o regionalismo.
A crítica literária hegemônica, formada nesse contexto, privilegiou a análise de como os problemas sociais e civilizacionais eram abordados, deixando de lado o estudo de formas e estratégias imaginativas.
O sucesso editorial esmagador dos primeiros romances de José de Alencar (Cinco minutos, A viuvinha e O Guarani) no século XIX estabeleceu um modelo pautado na realidade (regionalista e psicológica) que influenciou os movimentos literários subsequentes (Realismo e Naturalismo). Esse modelo, segundo alguns estudos, obstruiu o caminho que poderia ter levado a uma tradição de ficção sobrenatural profícua no Brasil.
Além disso, a crítica inicial, ao analisar obras como Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, interpretou o projeto fantástico não como uma estética válida, mas sim como afetação byroniana ou manifestação de melancolia do autor, descompromissada com a literatura pátria.
Uma hipótese ousada levantada pela crítica, baseada nos estudos de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, sugere que a resistência ao fantástico está ligada a uma tendência cultural brasileira à familiaridade.
O espírito brasileiro demonstraria um "horror às distâncias" e um "amor ao que é conhecido, familiar e íntimo".
Como o fantástico se constitui e se alimenta de uma estranheza inexplicada, essa característica cultural dificultaria a recepção do estranho ficcionalizado, truncando a penetração do gênero.
Apesar da marginalização, a produção de Literatura Fantástica no Brasil é contínua desde o século XIX.
Grande parte dos estudiosos considera os contos de Álvares de Azevedo em Noite na taverna e o drama Macário como aqueles que inauguram uma produção fantástica na literatura brasileira. Mesmo que suas obras não se enquadrem plenamente nas teorias do gênero, elas ensejaram uma série de narrativas de cunho fantástico. Azevedo foi influenciado por autores estrangeiros como Edgar Allan Poe e E.T.A. Hoffmann.
Outros autores importantes do período que "ensaiaram seus contos fantásticos" incluem:
Machado de Assis: Além de clássicos realistas, produziu contos fantásticos como "O imortal" e é listado entre os que praticaram o gênero. Seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) também possui elementos fantásticos.
Joaquim Manuel de Macedo: Autor de A luneta mágica (1869).
Emília Freitas: Com o romance A rainha do Ignoto (1899), é a primeira brasileira a publicar um romance de ficção científica.
Naturalistas: Autores como Aluísio Azevedo e Lima Barreto também escreveram contos com temas fantásticos.
Para Murilo Garcia Gabrielli, no Brasil, talvez apenas dois autores possam ser considerados representantes da literatura fantástica em sentido estrito. Estes são os nomes que o estudante deve priorizar, pois são exceções no cânone realista:
Murilo Rubião é o precursor da literatura propriamente fantástica no Brasil, com o lançamento de seu primeiro livro, O Ex-mágico e outros contos (1947).
Estilo: Sua narrativa se baseia na irrupção de um estranho inexplicado em um cenário banalizante. A estranheza manifesta-se em eventos absurdos, como um mágico entediado que se torna funcionário público, ou a perplexidade diante da transformação de um inseto (como em Kafka).
Exemplos Notáveis: O pirotécnico Zacarias, Teleco, o coelhinho (que, para alguns críticos, pende ao real-maravilhoso).
José J. Veiga é o outro autor frequentemente citado como um mestre do gênero, consagrado por uma literatura que se distancia programaticamente do realismo. Ele é frequentemente vinculado ao realismo mágico.
Exemplo Notável: A hora dos ruminantes.
A FCB, apesar de historicamente invisível, possui marcos importantes, divididos em fases:
Primeira Obra: O doutor Benignus (1875), de Augusto Emílio Zaluar.
O Pai da FCB: Jeronymo Monteiro (nascido em 11 de dezembro de 1908), considerado o pai da FCB. Em sua homenagem, 11 de dezembro é o Dia da Ficção Científica Brasileira.
Primeira Onda (Anos 1960/1970): Autores como André Carneiro (Diário da nave perdida), cuja prosa era mais subjetiva e existencialista. André Carneiro é considerado um dos mais importantes autores brasileiros de ficção científica.
A produção contemporânea, especialmente a partir do final dos anos 1990 (Terceira Onda), demonstra um fluxo profícuo de literatura de cunho fantástico, reinventando temas e conquistando novos espaços, como a internet e editoras especializadas.
A Fantasia Urbana se tornou uma força pulsante, pois explora a "magia particular que acontece quando o fantástico invade o familiar" nas cidades brasileiras.
Temática Brasileira: O gênero usa o sobrenatural como um espelho distorcido, mas fiel, da sociedade brasileira, discutindo desigualdade, violência, corrupção e as cicatrizes da história.
Autores/Exemplos:
André Vianco (pioneiro em soltar vampiros nas ruas de Osasco).
Eduardo Spohr (com sua mitologia angelical).
Mônica (de Wagner RMS): Usa o gênero para confrontar o real, com uma anti-heroína que é uma arma secreta do Estado, cuja força nasceu do trauma da ditadura militar e é ligada a uma entidade mística (Povo Antigo).
A Terceira Onda da FCB (pós-1990) floresce na web e em e-books. A FCB atual reflete a realidade científica, focando em temas de ponta, como Inteligência Artificial (IA) e bioengenharia.
Temas Atuais: Os escritores de FC exploram a iminente revolução pós-humana, a construção de super-humanos pela bioengenharia e a ameaça da IA. Um ponto de reflexão é que o aperfeiçoamento tecnológico (ciborgues e longevidade) será acessível apenas à elite, perpetuando a desigualdade.
Alexey Dodsworth: Autor da Terceira Onda, mencionado por suas obras de FC.
Afrofuturismo e Mitologia Iorubá: O escritor afro-brasileiro Fábio Kabral é uma figura central do Afrofuturismo, gênero que mistura fantasia, tecnologia e ancestralidade. Suas obras abordam temas como ancestralidade africana e afrofuturismo.
Exemplos: O caçador cibernético da rua 13 (um ciborgue caçador de espíritos malignos em uma cidade com carros voadores, inspirado em orixás), e o romance de fantasia Sopro dos deuses (2024), inspirado na mitologia afro-brasileira.
O cenário contemporâneo é sustentado por editoras especializadas e eventos que celebram o gênero:
AVEC Editora: Criada em 2014, dedica-se a trazer o melhor da literatura, principalmente a literatura fantástica, e acredita em autores nacionais. A editora publica obras que venceram prêmios, como Viajantes do Abismo, de Nikelen Witter (Narrativa longa ficção científica 2020), e Porém Bruxa, de Carol Chiovatto (Narrativa longa fantasia 2020).
Odisseia de Literatura Fantástica: Evento literário anual (desde 2012 em Porto Alegre) dedicado aos gêneros relacionados (horror, fantasia, FC). Em 2019, inaugurou o Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica para eleger as melhores obras nacionais nos gêneros especulativos.
Apesar da histórica aversão da crítica ao fantástico, muitos autores consagrados, tipicamente associados ao Realismo ou ao Modernismo, fizeram uso expressivo de elementos fantásticos, góticos ou de horror. Estudos recentes focam em reinterpretar o cânone sob a perspectiva das "poéticas negativas" (medo, horror, grotesco, gótico).
O Gótico é um modo discursivo que explora os medos, a repulsa, o horror e o trágico, e está ligado a uma visão de mundo moderna e pessimista.
No Brasil, a tradição gótica esteve oculta. Pesquisas têm revelado a presença recorrente de elementos góticos (loci horribiles, personagens monstruosas, retorno do passado fantasmagórico) em obras que variam do período colonial ao pré-modernista.
O gótico, no século XX, diluiu-se no romance realista e em outros gêneros.
Cornélio Pena (Fronteira, 1935) é um dos autores mais influentes do "romance de 30", classificado como intimista ou psicológico.
Conexão Gótica: Seu nome é frequentemente associado a escritores góticos (Poe, Hawthorne, Emily Brontë).
Temas: Sua obra é exemplar do "romance católico", carregado de questões religiosas e morais (pecado, profanação). O Mal não é substancializado, mas está presente na atmosfera corrompida e nas relações sociais.
Locus Horribilis Fronteira: O romance apresenta um cenário gótico com um ambiente decadente em Minas Gerais, marcado pelas "montanhas negras" e um casarão antigo, explorando um passado fantasmagórico de crimes e transgressões.
Lúcio Cardoso (associado ao romance de 30) se destaca por criar atmosferas de pesadelo e ter forte influência da poética gótica, similar ao Southern Gothic de William Faulkner.
A crônica da casa assassinada (1959) é considerado um dos "mais bem acabados romances góticos brasileiros".
Espacialidade Gótica: Em O anfiteatro (1946), o espaço central é a mansão da Tijuca (Quinta dos Leões), descrita como sombria. O Gótico do Novecentos frequentemente usa a casa familiar como um locus horribilis, onde a ameaça está contida e os segredos do passado assombram os moradores.
O romance Ciranda de Pedra (1954) é um exemplo de Gótico feminino na literatura brasileira.
Foco Temático: O Gótico feminino se especializa em retratar os horrores do âmbito familiar sob o ponto de vista da mulher.
Retorno do Passado: Lygia Telles investe no tema do retorno fantasmagórico do passado (trauma, violência, transgressões) como elemento estrutural.
Horrores Realistas: Em Ciranda de Pedra, o medo e o desconforto não são provocados por fantasmas tradicionais, mas por horrores muito mais realistas e próximos do cotidiano (desagregação moral, transgressões, vícios familiares).
Narrativas criminais que se concentram na mente do criminoso ganham força no século XX, seguindo o Zeitgeist da psicanálise. O Brasil, contudo, privilegiou historicamente o crime explicado por fatores sociológicos.
O romance Angústia (1936) é uma notável exceção na obra de Graciliano Ramos (geralmente voltada às causas sociais), alinhando-se ao gênero suspense psicológico (psychothriller).
Ponto Fora da Curva: É um romance verborrágico, repetitivo e complexo, diferentemente da prosa seca do autor.
Foco no Assassino: A obra é um estudo da mente patológica de Luís da Silva. O crime (assassinato de Julião Tavares) não é passional, mas a realização de um processo que já ocorre na psique perturbada do protagonista.
Simbologia: A narrativa explora profundamente a psicanálise, utilizando símbolos recorrentes (como o rato, que representa os impulsos de Luís).
A literatura de Rubem Fonseca é marcada por um realismo violento ("brutalismo" ou "realismo feroz"), que frequentemente culmina em morte. Ele explora o monstro contemporâneo: o serial killer.
Serial Killers Inconvencionais: Os multicidas de Fonseca em contos como "Feliz Ano Novo" e "Passeio Noturno" (1975) fogem dos estereótipos de desvios sexuais ou distúrbios mentais, sendo a monstruosidade motivada por fatores sociais (pobreza, fome, embate de classes).
Narrador Dispático: O narrador, muitas vezes autodiegético, demonstra indiferença e ausência de empatia (dispatia) diante da brutalidade, o que intensifica o efeito de horror no leitor.
Embora José Lins do Rego seja um autor regionalista por excelência, a violência em romances como Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953) ultrapassa o objetivo da mera denúncia social.
Mal Universal: O tratamento literário dado à violência sobreleva a questão regional, estendendo-se ao universal. O autor desvenda a intimidade humana confrontada com a ambiguidade de ser atraída e repelida pela crueldade.
Efeitos Negativos: A violência assume uma função estruturante, como o suicídio da personagem sinhá Josefina, que é construído com suspense e horror, agenciando emoções díspares no leitor.
O único romance de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas (1956), é interpretado pela crítica como uma narrativa cuja estrutura é regida pelo medo e pelo Sublime.
Visão Cósmica: Rosa sustenta uma visão de mundo cósmica, na qual o homem ocupa um lugar pequeno e transitório em um mundo que é vasto e insondável, jamais subsumível à compreensão humana.
O Sublime (Burke/Kant): O Sublime (experiência estética pautada na grandiosidade, obscuridade e poder) é usado como recurso formal para representar essa visão.
O Sertão Sublime: O sertão é apresentado como um objeto sublime, vasto e ubíquo ("O sertão é do tamanho do mundo"). Além de grandioso, o sertão é ameaçador (o Liso do Sussuarão), o que se alinha à concepção de que o terror é a condição sine qua non do sublime.
O Diabo Sublime: O diabo (o mal, a figura de Hermógenes) também é convertido em uma ideia sublime. É marcado pela obscuridade (o caos) e por um poder que excede a capacidade humana de compreensão e resistência.
O Realismo Mágico (ou Realismo Fantástico) é uma tradição extremamente forte na América do Sul, caracterizado pela forma como o irreal e o real surgem entretecidos. Alguns autores brasileiros, como Murilo Rubião (que pende ao real-maravilhoso) e José J. Veiga, são frequentemente associados a essa vertente. O Realismo Mágico difere do Fantástico stricto sensu de Todorov, pois a presença do impossível é menos hesitante, sendo aceita como parte da realidade narrativa.
A Terceira Onda (pós-1990) tem muitos autores talentosos. Além dos mestres contemporâneos, como Eduardo Spohr e André Vianco, destacam-se:
Afrofuturismo: Fábio Kabral.
Ficção Científica: Alexey Dodsworth, Cirilo S. Lemos.
Fantasia: Carol Chiovatto, Bráulio Tavares (que também organiza antologias do gênero).
Horror/Gótico: Thunder Dellú, Enéias Tavares.
Historicamente, no Brasil, o gênero fantástico (junto com a ficção científica) foi, por vezes, relegado ao público infantojuvenil (como a Série Vaga-Lume e a obra de Monteiro Lobato, Sítio do Picapau Amarelo), o que, para parte da crítica, limitava seu prestígio institucional e sua consideração como "alta literatura".
Sim. A Literatura de Cordel, que possui forte tradição no Nordeste, é cheia de aventuras com elementos fantásticos, como "Juvenal e o Dragão" e "O Feiticeiro do Reino do Monte Branco".
Um Romance FIX-UP é um romance criado pela junção de um conjunto de contos. As histórias se interligam, compartilhando universo e personagens, dando forma ao livro. Este formato é relevante para a compreensão de algumas obras de Fantasia e Ficção Científica.